A especulação de que o Presidente russo poderia declarar formalmente guerra à Ucrânia no chamado “Dia da Vitória” não se concretizou. Em vez disso, Vladimir Putin reiterou no seu discurso as justificações para a invasão da Ucrânia e traçou um paralelo entre a luta da Segunda Guerra Mundial e a guerra atual.
Uma declaração formal de guerra à Ucrânia permitira a mobilização total das forças de reserva russas. “Todas essas narrativas são exercícios retóricos, porque nada indicava que a Rússia fosse declarar guerra à Ucrânia nem que fosse declarar o recrutamento e a mobilização”, descreveu o major-general Carlos Branco ao Expresso, apontando que “não tinha havido nenhuma alteração qualitativa que justificasse uma alteração no comportamento russo”.
Daniel Pinéu, professor de relações internacionais, olha de forma positiva para a ausência desse anúncio do discurso de Putin. “Não é o que de facto aconteceu e ainda bem, significa que apesar da situação humanitária no sul e no leste da Ucrânia estar bastante mal, de haver muitos ataques russos e portanto a ofensiva não ter parado, não houve até agora um escalar da guerra”, disse.
Mas alerta que ainda é possível que ocorra no futuro. “Não sabemos se isso é porque efetivamente Putin tem outros cálculos políticos, nomeadamente a sua legitimidade interna, a sua popularidade e portanto não vai fazê-lo, ou se está ainda a decidir se o vai fazer e a fazê-lo o fará numa outra altura, não ligando essa ideia a uma celebração de uma vitória de uma outra guerra”, analisa.
Um futuro pouco iluminado
As pistas sobre as ações futuras de Moscovo foram escassas. “É muito difícil ver isso de um discurso preparado para consumo interno, no qual não se falou praticamente da guerra”, indica Daniel Pinéu.
No entanto, destaca o ênfase de Vladimir Putin na unidade nacional russa e na ideia de um Estado multiétnico, nomeadamente quando está “a acusar a Ucrânia de genocídio, e de estar ele próprio - o Kremlin - acusado de genocídio na Ucrânia”. O especialista em segurança internacional aponta que podem estar em causa “algumas questões de legitimidade interna”, apontando que as baixas ou dificuldades militares que o exército russo está a sofrer têm levado a movimentações em vários locais “dentro da Federação Russa e em países limítrofes que são muito importantes e que são aliados”, dando exemplos como o Cazaquistão ou o Azerbaijão.
“Estamos a ver uma série de movimentações geo-políticas de países que estão a dizer 'se calhar o poderio militar russo não é tão temido quanto isso e a capacidade russa de nos compelir a fazer o que quer torna-se mais complicada porque agora temos um novo esquema’”, aponta. Um esquema em que a NATO não entra no conflito mas presta apoio, uma União Europeia mais unida e sanções que dificultam a situação financeira da Rússia.
A menção a um Estado multi-étnico é também destacada por Carlos Branco. “No meio disto tudo [Putin] está implicitamente a fazer o contraponto em relação à Ucrânia, que é um Estado multinacional, multi-étnico mas que defende a prevalência de um grupo social sobre os outros. Ele procura neste discurso contrapor com a multi-etnicidade russa, que no fundo unem esforços para um bem comum”, disse, analisando o pensamento de Putin.
No seu discurso, o Presidente russo disse que os combatentes de diferentes etnias “estão a lutar juntos, protegendo-se uns aos outros de balas e estilhaços como irmãos” e afirmando ser o “poder da Rússia”.
O investigador aponta que o discurso reitera questões já esperadas, como o apelo à memória, ao esforço coletivo do Estado e ao espírito patriótico, mas que “não dá pistas nenhumas relativamente ao futuro”. “Eu pensava que ele fosse fazer alguma declaração sobre o futuro mas na prática as projeções são absolutamente diminutas ou praticamente nulas”, analisa.
O peso da China, os inimigos de Moscovo e o foco no Donbas
Apesar de o discurso de Putin estar em linha com argumentos já apresentados pela Rússia, há pontos para os quais Diana Soller, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), chama a atenção.
Um deles é a integração de uma menção à China. “Honramos todos os soldados dos exércitos aliados – americanos, ingleses, franceses, combatentes da resistência, bravos soldados e resistentes na China – todos aqueles que derrotaram o nazismo e o militarismo”, disse Putin.
“O facto de ter destacado a China e de ter sido sequer mencionada é uma novidade porque a frente asiática da guerra, que existiu, normalmente não é mencionada nos discursos europeus ou russos. Portanto esta menção à China enquanto vencedor da Segunda Guerra Mundial assinala a importância que a China passou a ter para a Rússia e vice-versa”, observa.
As palavras que não se pronunciam também têm peso, sendo que “Ucrânia” e “ucranianos” não foram ditas. Há, no entanto, referência à possibilidade de Kiev adquirir armamento nuclear. “No imaginário de Putin os inimigos deixaram de ser a Ucrânia, se alguma vez foram, e passaram a ser por esta ordem, na entrada do discurso: a NATO, os Estados Unidos e os neo-nazis”, diz Soller, acrescentando que “no imaginário russo há uma ligação entre a Ucrânia e o Ocidente, feita através desses grupos que Vladimir Putin considera nazis, e portanto a Ucrânia passou a ser apenas o palco da guerra e não o inimigo da Rússia”.
O foco esteve não na Ucrânia, mas no Donbas. Putin deixou à milícia do Donbas e às forças russas a mensagem de que “estão a lutar pela nossa pátria, o seu futuro, para que ninguém esqueça as lições da Segunda Guerra Mundial, para que não haja lugar no mundo a torturadores, esquadrões da morte e nazis”.
Para Soller, a ligação entre os homens que lutaram na segunda grande guerra e os homens que lutam hoje no Donbas pela mesma causa reforça “a ideia de nazificação da Ucrânia” junto do imaginário russo. Mas pode também ter um duplo significado: “ou que a narrativa de uma guerra de larga escala não chegou a entrar na Rússia, que não seria surpreendente, ou que Putin quer circunscrever a guerra ao Donbas.