Antevê-se obscuro e incerto o futuro do Partido Popular (PP, conservador). A maior força da oposição em Espanha rompeu-se à vista de todos, num confronto aberto entre duas das suas figuras de proa: Pablo Casado, de 41 anos, presidente do partido; e Isabel Díaz Ayuso, de 43, presidente do governo regional de Madrid. Ele insinua que ela se envolveu em corrupção, ela acusa-o de espionagem ilegal. É a maior crise desde o nascimento do partido, em 1989, e é difícil fazer prognósticos otimistas a curto prazo.
Enquanto os adversários no Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) e no Vox (extrema-direita) esfregam as mãos face ao inesperado presente das lutas fratricidas entre os populares, a cúpula do PP procura um caminho que evite a implosão.
No azarado caminho do PP está, e não pela primeira vez, a sombra da corrupção. Após seis meses de escaramuças, Díaz Ayuso declarou-se injustamente acusada, numa conferência de imprensa dramática, quinta-feira. Em causa está o seu irmão Tomás, que intermediou o fornecimento de máscaras a um dos hospitais de campanha que o governo madrileno instalou nos momentos mais dramáticos da pandemia, no verão de 2020. O contrato foi adjudicado sem concurso público — exigido por lei salvo situações de emergência —, à empresa Priviet Sportive, SL, que pertence a um amigo de infância dos irmãos Díaz Ayuso.
A suspeita lançada pela direção do PP é que Tomás, agente comercial na área da saúde, recebeu 286 mil euros de comissão enquanto intermediário da compra de 250 mil máscaras FFP2, no valor total de €1.512.000. Isabel reconheceu o negócio, num comunicado emitido esta sexta-feira, mas corrigiu o valor para €55.850 mais IVA e garantiu que foi tudo legal. Na véspera já desmentira qualquer tratamento favorável ao irmão, o qual, afirma, declarou ao fisco tudo quanto auferiu.
Espionagem à companheira de partido
Para corroborar as suspeitas, altos funcionários do PP próximos de Casado e ligados ao município de Madrid — presidido por José Luís Martínez-Almeida, da fação de Casado — terão montado uma operação de espionagem contra a presidente da região. O escândalo levou, quinta-feira, à demissão do vereador Ángel Carromero, uma figura de segunda linha.
A teia de Casado incluiu contratação de detetives privados que obtivessem provas fidedignas da alegada conduta irregular da presidente regional. “Nunca pude imaginar que a direção nacional do meu partido fosse atuar de modo tão cruel e injusto contra mim”, afirmou Ayuso, figura ascendente da direita espanhola e admirada por conservadores de toda a Europa, incluindo Portugal. Face às câmaras e a dezenas de jornalistas, esteve à beira das lágrimas. “As declarações que os meios de comunicação foram publicando durante toda a manhã, provenientes do círculo de Pablo Casado e que ele não desmente, são o pior que se pode esperar dos políticos.”
A líder madrilena acusou diretamente o chefe do PP de ter urdido um plano parar destruí-la politicamente. “Que a oposição me ataque é lógico, mas que seja a direção do meu partido a fazê-lo é insensato.” Aludiu ao seu êxito nas urnas, sem par entre companheiros de partido desde há muitos anos. Ainda domingo passado o PP venceu regionais antecipadas em Castela e Leão, convocadas para imitar a vitória de Ayuso, mas o candidato Alfonso Mañueco granjeou um resultado pírrico que o deixa nas mãos da extrema-direita.
Contra-ataque de Casado: “Não permitirei que um irmão meu receba 300 mil euros”
O presidente do PP foi entrevistado esta sexta-feira pela rádio COPE, e prometeu, angelical: “Quando chefiar o Governo de Espanha, não permitirei que um irmão meu receba 300 mil euros por um contrato adjudicado pelo Conselho de Ministros”. O líder popular garante que a agora rival não comunicou à direção o contrato intermediado pelo irmão, de que beneficiou um amigo. “Se eu presidisse a essa instituição, teria o dever de inibir-me de adjudicar o contrato. Se essa instituição usou a empresa de um amigo para obter um contrato, pode-se pensar que está a usar um testa-de-ferro para não aparecer no contrato adjudicado.”
Logo após as farpas a Ayuso, Casado assegurou que ninguém a defendera mais do que ele próprio. “Mas creio ter o direito de velar pela exemplaridade da formação política a que presido pedindo informações em privado.” Considera que a líder madrilena “caluniou” companheiros do PP.
Casado e Díaz Ayuso, velhos amigos e ex-colegas nas organização juvenil do PP, Novas Gerações, lançam-se numa dura pugna pelo poder no partido. O triunfo nas eleições regionais de maio de 2021 fez de Ayuso o maior ativo eleitoral do PP e confere-se uma popularidade com que Casado não pode sonhar. Isso entusiasmou-a a aspirar à liderança da federação madrilena do PP, a catapulta mais sólida para um dia chegar à presidência do partido. Esta sexta-feira, a direção popular adiou sine die o congresso que provavelmente a consagraria, numa nova mostra da luta de egos entre os dois dirigentes. A aposta de Casado contra Ayuso para chefiar o PP na capital seria, ao que tudo indica, o autarca Martínez-Almeida.
À conferência de imprensa de Ayuso respondeu, passadas duas horas, o secretário-geral do PP, Teodoro García Egea. Também com câmaras ligadas, fez uma declaração solene: “Nunca pude imaginar que atacasse de forma tão cruel e injusta a direção do partido que lhe deu tudo [a Ayuso]. Fez acusações gravíssimas, quase do foro do delito. Nunca pude imaginar esta reação, algo nunca visto na história do nosso partido, especialmente quando a apoiámos nos momentos de maior solidão”.
García Egea anunciou a abertura de um processo disciplinar à líder madrilena, que poderá culminar na sua expulsão do PP. Esse cenário tornaria provável uma cisão, agravando a já existente fragmentação da direita espanhola. “Isabel Díaz Ayuso usa a luta pelo poder para ocultar um caso de presumível corrupção que beneficia o seu irmão”, acrescentou o secretário-geral do PP, argumentando: “Ter um bom resultado eleitoral não a exime do dever de retidão e lealdade”.
Aznar: “O conflito na Ucrânia é menos grave do que este”
As reações à crise no espetro sociopolítico espanhol são variadas, coincidindo em surpresa e preocupação. O PP, que aspira a governar Espanha após as legislativas do próximo ano, como fez em duas ocasiões anteriores (1996-2004, com José María Aznar, e 2011-2018, com Mariano Rajoy), mostra-se dividido como nunca.
Embora dirigentes regionais conhecidos pela sensatez, como o presidente galego Alberto Núñez Feijóo, apelem ao diálogo, há quem não acredite que a crise tenha solução pacífica. A deputada Cayetana Álvarez de Toledo, outrora líder parlamentar do PP, admite ao expresso que previu esta crise pouco antes de ser afastada do cargo e punida pela sua atitude rebelde face ao presidente do partido. “Pablo Casado deve demitir-se imediatamente”, defende.
José Antonio Zarzalejos, um dos analistas políticos mais considerados no panorama jornalístico espanhol, está pessimista: “Provavelmente será o fim do PP como o conhecemos”. O mesmo pensa Gabriel Rufián, líder parlamentar da Esquerda Republicana da Catalunha (independentista): “Não creio que Casado chegue ao Natal à frente do PP”. Da frente esquerdista Unidas Podemos, falou a ministra Ione Belarra: “A senhora Ayuso vai pelo mesmo caminho que os últimos quatro candidatos do PP na Comunidade de Madrid, acabar imputada ou condenada por corrupção”.
Mais prudentes são as posições dos partidos que mais têm a ganhar, PSOE e Vox. Enquanto o porta-voz socialista Felipe Sicília critica o uso das instituições públicas para “espiar adversários”, um barão regional do partido defende, sob anonimato: “Deixa-os cozer no seu próprio molho”. Macarena Olona, secretária-geral da bancada do Vox, afirma: “Enquanto cidadã, assisto surpreendida, aterrada e horrorizada a este espetáculo”. Até Aznar comentou o caso, com ironia: “O conflito na Ucrânia é menos grave do que este. Lá não há armas nucleares”.
A imprensa é unânime ao assinalar a gravidade do caso nos seus editoriais. Aponta o conservador “ABC”: “O dano mútuo é brutal e o eleitor do PP assiste incrédulo e até com desprezo a este episódio, que não é um incêndio momentâneo, antes rutura derradeira entre Casado e Ayuso”. Sobre o líder do PP, defende o diário: “Deve entregar a cabeça do seu secretário-geral e, a partir daí, recompor as distintas relações e interlocuções”.
“El Mundo”, que, como o digital “El Confidencial”, revelou ontem a operação contra Ayuso, define as manobras da direção do PP como “tentativa de chantagem sem provas que liquida a presunção de inocência de uma presidente autonómica eleita em massa pelos cidadãos, sobre a qual não pesa nenhuma mancha judicial”. O editorial do jornal refere-se a Casado, sem nomeá-lo, como “mescla de insegurança patológica, mediocridade política e ciúmes absurdos”, para concluir que “os votantes do PP sabem que o partido é dirigido por uma infeliz conjunção de insensatos sem escrúpulos”.
Mais à esquerda, “El País” faz menção a ma crise “de crueza e gravidade sem precedentes na política espanhola”. Recorda que “a explosão pública do assunto tem um traço trágico: foi a corrupção invasiva e estrutural, ratificada judicialmente em pelo menos três ocasiones, que desalojou do poder Mariano Rajoy após uma moção de censura, em 2018”. Na altura foi a oposição que se uniu para destituir o primeiro-ministro. Agora nem foi preciso os adversários do PP mexerem um dedo.