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Síria: aliados de Bashar al-Assad controlam rede de tráfico de droga - o regime financia-se graças à anfetamina captagon

“O captagon provavelmente já é a fonte de moeda estrangeira mais importante da Síria” disse ao "New York Times" Jihad Yazigi, editor do “Syria Report”, referindo-se ao nome das anfetaminas que são produzidas e exportadas em massa com ajuda dos militares e aliados do Presidente da Síria, Bashar al-Assad

Crianças no campo de Idlib, a província no noroeste sírio para onde fugiram todas as pessoas que os avanços do exército do Presidente Assad foi fazendo ao longo dos últimos 10 anos para retirar o país aos rebeldes
Anadolu Agency/Getty Images

Quem fugiu da Síria e ainda lá deixou família sabe que a guerra das bombas não foi necessariamente pior do que esta guerra agora: a impossibilidade de comprar até os alimentos mais básicos devido ao preço que atingiram por serem tão escassos, as casas geladas por não haver nem electricidade nem dinheiro para o combustível dos geradores, as escolas fechadas, as fábricas destruídas e milhares sem emprego.

O regime do Presidente Bashar al-Assad, porém, parece estar a passar ao lado das agruras do pós-guerra. Uma longa investigação do “New York Times” mostra que o tráfico de droga, mais especificamente anfetaminas (ou “speed”), está a ajudar a financiar o regime - e a produção não pára de aumentar, independentemente do número também crescente de apreensões de carga por várias forças policiais europeias e da região do Médio Oriente. Os números são gigantescos: a maioria dos comprimidos têm origem no porto de Latakia, controlado pelo governo, e o valor comercial, nas ruas, de cada apreensão, ronda os mil milhões de dólares (cerca de 890 milhões de euros).

Mais de 250 milhões de comprimidos de captagon - nome das anfetaminas em causa - foram apreendidos em todo o mundo até novembro de 2021, mais de 18 vezes a quantidade identificada e retirada de circulação há apenas quatro anos. No ano passado, as apreensões globais de captagon tiveram um valor de rua de cerca de 2,9 mil milhões de dólares (cerca de 2,5 mil milhões de euros), mais do que o triplo das exportações legais da Síria, na ordem dos 860 milhões de dólares (cerca de 762 milhões de euros).

“O captagon provavelmente já é a fonte de moeda estrangeira mais importante da Síria” disse ao jornal norte-americano Jihad Yazigi, editor do “Syria Report”, uma publicação que acompanha a economia do país. “Isso não significa que as receitas auferidas sejam investidas na economia, claro, estão antes a ser canalizadas para as contas dos contrabandistas e dos senhores da guerra”.

A rede é legal, foi estabelecida por e emprega homens próximos do Presidente, pelo que qualquer tentativa de desmantelar a operação se torna impossível, como explicou ao jornal norte-americano o enviado especial para a Síria da administração do ex-presidente Donald Trump: “A ideia de irmos falar com o governo sírio sobre algum tipo de cooperação é simplesmente absurda”, disse Joel Rayburn. “É o governo sírio que está a exportar as drogas, não é sequer como se eles tivessem optado por olhar para o outro lado enquanto os cartéis operam, eles são os cartéis”.

A droga em causa, captagon, já foi legal. Nasceu nos anos 80, na Alemanha, para ajudar pessoas com deficiência crónica de atenção. Rapidamente começou a ser usada por todo o mundo como estimulante, uma espécie de cafeína hiperconcentrada. Quando foram descobertos os problemas de adição que causava, o medicamento foi retirado do mercado mas o fabrico ilícito nunca cessou. Quando a guerra civil começou, estavam criadas na Síria as condições ideais para o tráfico.

Idlib, no noroeste da Síria, é das poucas províncias que o regime sírio não controla, mas é um poço de extremismo, onde já se perdeu quase todo o espírito da revolução de 2011
picture alliance/Getty Images

Os contrabandistas aproveitaram para vender a droga a combatentes de todos os lados, já que os ‘speeds’ são conhecidos precisamente como drogas que não só fornecem níveis de energia muito grandes como inibem os receptores que normalmente transmitem ao cérebro a noção de perigo. A coragem numa guerra como a da Síria, que envolveu cercos militares e ataques químicos, tem de vir de algum lado. Juntamente com farmacêuticos e donos de fábricas semi-destruídas, foi fácil começar um novo negócio. Faltava internacionalizar o produto, o que também não foi difícil dada as rotas marítimas do Mediterrâneo e a reativação dos caminhos do contrabando estabelecidos para a Jordânia, Líbano e Iraque.

O investimento veio do centro do poder: dos associados de al-Assad, figuras da política e do meio militar, alvo de sanções internacionais, desejados como réus em diversos tribunais europeus, banidos de dezenas de países em todo o mundo, que tiveram de se virar para um negócio local para manter o nível de vida.

Como explicam os jornalistas do “New York Times”, os laboratórios de captagon estão espalhados por áreas controladas pelo governo na Síria, em território controlado pela milícia libanesa do Hezbollah, perto da fronteira com o Líbano e à volta da cidade portuária de Latakia.

“Muitas das fábricas são pequenas, funcionam em garagens ou casas abandonadas, onde vários trabalhadores combinam os produtos químicos com liquidificadores para fazer comprimidos. Há soldados do regime a guardar algumas instalações ou então trazem cartazes que põem perto destas casas, a dizer que são zonas militares fechadas”, lê-se no artigo.

Segundo um ex-militar sírio e alguns soldados destacados para estas zonas, quem gere toda a segurança destes locais e supervisiona o transporte da mercadoria até ao porto de Latakia é o pessoal da Quarta Divisão do Exército, chefiado por Maher al-Assad, irmão mais novo de Bashar.

Estes homens são antigos vizinhos. Moravam nesta zona da cidade síria de Atareb, na província de Alepo, até ser bombardeada
Aaref Watad / AFP / Getty Images

O departamento de segurança desta divisão está a cargo de Ghassan Bilal, o também diretor do Gabinete de Segurança Interna da Síria, organismo responsável pela detenção e tortura de milhares de sírios. Bilal é um dos alvos das sanções do ocidente, e está em várias listas de “criminosos procurados” de grupos de ativistas sírios que se estabeleceram por toda a Europa, com o objetivo de reunir testemunhos e provas das ações destes militares, quando um dia o regime se dissolver e um tribunal especial possa julgar os crimes de guerra no país.

“As fábricas de captagon estão estabelecidas em território da Quarta Divisão, estão sob a sua proteção”, disse ao “New York Times” Hassan Alqudah, diretor da divisão de investigação de narcotráfico no Departamento de Segurança Pública da Jordânia.

Outros nomes próximos do regime emergem desta investigação, ainda que nenhum tão proeminente quanto o de Maher. Amer Khiti é um exemplo: originalmente um comum comerciante de gado, Khiti tornou-se contrabandista durante a guerra, transportando comida e outras mercadorias entre a capital, Damasco, e os subúrbios controlados pelos rebeldes.

Tudo isto com o apoio do Estado, que, quando finalmente conseguiu expulsar os rebeldes dos arredores de Damasco, cedeu direitos de preferência na compra de propriedades abandonadas a uns quantos aliados, como Khiti, que lá comprou imóveis e investiu em instalações onde se embalam os comprimidos.

Khodr Taher é mais um protagonista de uma história estranha. Trata-se de um ex-comerciante de aves da região de Damasco, que, sem grande explicação, passou a fazer parte da elite do exército, e hoje supervisiona os postos de controlo que a Quarta Divisão mantém em todo o país, e por onde passam, com o seu aval, quilos de captagon.

Em contrapartida, já este ano, por altura das eleições presidenciais que Bashar al-Assad venceu com 95% dos votos, ambos os empresários trataram de financiar cartazes, concertos, anúncios televisivos, tudo o que pudesse ajudar o atual presidente a renovar o seu mandato. Nenhum dos intervenientes aceitou dar explicações ao “New York Times”.