A discussão sobre as regras para o julgamento de Trump no Senado foi longa e acalorada, apesar de o resultado final estar pré-decidido. Os democratas queriam poder chamar testemunhas e requerer documentos e outras provas. Os republicanos não queriam nada disso.
Estes últimos tencionavam ainda reduzir a apresentação das acusações a Trump a um período de 24 horas distribuído por dois dias, obrigando os senadores a falar durante a noite (a propósito disso, o veterano jornalista Carl Bernstein chamou “Midnight Mitch” a Mitch McConnell, o líder republicano no senado). A seguir, a resposta da defesa do presidente teria outro tempo igual para responder. Só então se votaria sobre a possível chamada de testemunhas e a requisição de documentos.
Foi um debate que se prolongou até altas horas da noite, entre terça e quarta-feira. As onze propostas para levar testemunhas e provas ao julgamento foram todas rejeitadas, com os 53 senadores republicanos a derrotarem invariavelmente os 47 democratas. Impôs-se o plano original de Mitch McConnell. A única concessão substancial foi a de que os dois dias previstos passaram a três. Mas o limite de 24 horas mantém-se, bem como o adiamento da votação sobre testemunhas e outras provas, onde pouca gente, aliás, espera que os democratas venham a ter sucesso. Quanto aos canais de televisão, não podem entrar na sala do Senado. Só a câmara oficial desse órgão continuará a filmar, sem captar expressões individuais de senadores nem outros pormenores eventualmente comprometedores.
Somadas a todas as outras restrições, estes aspetos deverão reduzir bastante o impacto público do julgamento. Será um objetivo dos republicanos, dado que 2020 é ano de eleições e refutar os factos que servem de base ao ‘impeachment’ parece difícil, se não impossível.
Duas acusações interligadas
Os factos, como se sabe, têm a ver com uma conversa entre Trump e o então recém-eleito presidente da Ucrânia, Volodymr Zelensky, em 25 de julho de 2019, em que o presidente americano deu a entender que certas medidas americanas a favor da Ucrânia estariam dependentes de um determinado “favor”. O termo, de conotações naturalmente suspeitas, foi empregue pelo próprio Trump.
Uma das acusações que agora lhe fazem é a de abuso de poder. Ou seja, Trump utilizou os seus poderes para fins que não são aqueles para os quais lhe foram atribuídos. Ao suspender a entrega de 400 milhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia, bem como uma visita do presidente desse país à Casa Branca, até anunciar publicamente a abertura de uma investigação a Joe Biden e ao seu filho, Trump pôs os seus interesses particulares à frente dos do Estado. O apoio a determinados países, seja militar ou outro, deve ter por objetivo prosseguir os interesses dos Estados Unidos – no caso, contrariar a influência da Rússia naquela parte da Europa – não beneficiar o homem que de momento é presidente. Mas seria exatamente isso que teria acontecido, se o plano de Trump não tivesse sido descoberto (isto é, se um funcionário não tivesse feito uma denúncia interna).
Ao anunciar uma investigação sobre os Biden, a Ucrânia estaria a deitar uma sombra sobre o provável candidato democrata à presidência nas eleições de 2020. Aliás, este nem sequer exigia que a dita investigação de facto acontecesse. Bastava-lhe que fosse anunciada. Uma boa parte do eleitorado potencial de Trump são ‘low-information voters’, e para o efeito pretendido bastava a imagem do presidente Zelensky, ou de outro alto responsável ucraniano, a dizer que tinha sido lançada a investigação.
A outra acusação feita no impeachment é a de obstrução à justiça. Trump tentou bloquear o processo a cada passo, impedindo funcionários da Casa Branca de testemunhar no Congresso, recusando fornecer documentos que lhe foram legalmente requeridos (‘subpoened’) e intimidando potenciais futuros denunciantes (a campanha pública contra o autor da denúncia original tem sido intensa, incluindo exigências de que a sua identidade seja revelada, a fim de que a sua reputação possa ser destruída, como Trump tem procurado fazer com todas as pessoas que se lhe opõem).
Se todo o alto funcionário que é acusado de graves ofensas contra a Constituição, ou qualquer pessoa que é julgada num tribunal criminal, pudesse bloquear a realização da justiça das formas que Trump o tem feito – proibindo testemunhas de ir a tribunal, por exemplo – a realização da justiça tornar-se-ia impossível. Quanto ao facto de vários senadores terem anunciado previamente que iam votar a favor de Trump - McConnell admitiu expressamente que estava a coordenar a sua estratégia com os advogados de Trump – uma juíza do Supremo Tribunal notou que se um juiz ou um jurado dissessem isso antes de um julgamento seriam imediatamente excluídos.
Segurança para a inocência, mas não só
O sistema não era suposto funcionar assim. Quando a Constituição americana foi elaborada, no final do século XVIII, o mecanismo para demitir funcionários que cometessem abusos graves no exercício das suas funções foi muito discutido. A opção que acabou por ser adotada, e se mantém em vigor até hoje, foi o de encarregar dessa função o Congresso, dividindo-a em duas partes, conforme se lê em "O Federalista" ("The Federalist Papers"), uma coleção de ensaios publicada em 1788, na qual colaboraram alguns dos principais autores da Constituição:
“Os poderes relativos ao impeachment são uma restrição essencial nas mãos desse órgão às ingerências do executivo. A divisão deles entre os dois ramos da legislatura, atribuindo a um o direito de acusar, e ao outro o de julgar, evita o inconveniente de tornar as mesmas pessoas ao mesmo tempo acusadores e juízes; e protege contra o perigo de perseguição resultante da prevalência de um espírito faccioso em qualquer desses ramos. Como dois terços do Senado serão necessários para uma condenação, a segurança para a inocência, dada esta circunstância adicional, será tão completa como se possa desejar”.
O que os federalistas talvez não tenham previsto é que o mesmo sistema que protege a inocência também protege a culpa, mesmo quando ela é evidente, se o espírito faccioso for levado ao extremo. Os republicanos dirão que isso aconteceu no impeachment de Bill Clinton, há 20 anos; os democratas, que está a acontecer agora. A diferença é que o impeachment de Clinton tinha a ver com ações de natureza privada – um affair, mentiras sob juramento acerca disso – enquanto agora estão em causa ações relativas ao exercício de poderes presidenciais.
Outra diferença é a de que na altura, apesar de a bipolarização política já ser muito grande nos Estados Unidos, a margem para acordos entre republicanos e democratas, pelo menos em questões processuais, era um pouco maior do que aquela que existe hoje. Numa época em que o espírito tribal é potenciado ao máximo pelas redes sociais e por práticas como o micro-targeting político (objeto de uma polémica que atinge atualmente o Facebook, consiste em dirigir anúncios a audiências muito específicos, sem que o resto das pessoas se apercebam), não há grande margem para isso se repetir. A esperança dos democratas não é a de conseguirem demitir Trump, ou sequer que as provas contra ele sejam apresentadas no Congresso, mas fazer passar a mensagem de que houve um cover-up por parte dos aliados do presidente. Aí, talvez tenham mais sucesso.