Internacional

Sobe de tom a guerra entre evangélicos a favor e contra a destituição de Donald Trump

Editor da principal revista evangélica dos Estados Unidos considera que Trump é “moralmente inapto” para a presidência do país. Grupo de cerca de 200 fiéis responde com uma carta a atacar a revista. Trump atira em fúria no Twitter. Estará o Presidente a perder fôlego entre uma das suas maiores bases de apoio?

Leah Millis/Reuters

A discórdia entre os evangélicos norte-americanos acerca da destituição de Donald Trump continua a escalar. Habitualmente um bastião de apoio ao Presidente norte-americano, a comunidade evangélica dividiu-se após o editorial de uma das revistas mais importantes para os fiéis, a "Christianity Today", ter pedido o seu afastamento. As palavras foram duras e o próprio Trump reagiu em fúria, no Twitter.

A juntar ao rol de críticas à revista surge agora uma carta de um grupo de cerca de 200 evangélicos que não deixa cair o Presidente. São os “Evangelicals for Trump”, aqueles que, aconteça o que acontecer, estarão ao lado do atual ocupante da cadeira presidencial na corrida à reeleição em 2020. Foi isso que deixaram claro na carta enviada à revista, que inclui uma ameaça velada de que a "Christianity Today" possa vir a perder leitores ou receitas publicitárias por causa do episódio. Mas a dúvida agora é, também, a de saber o que pode perder Donald Trump.

A história começou com um editorial de Mark Galli, editor-chefe da "Christianity Today", principal revista evangélica nos Estados Unidos, que pedia que Trump fosse “afastado” da presidência do país. O processo de destituição em curso foi o gatilho para um texto (pode lê-lo AQUI) em que o Presidente norte-americano é classificado como “moralmente perdido”.

Mark Galli referia-se aos crimes imputados a Trump e que desencadearam o impeachment, que vai agora ser votado no Senado: abuso de poder, por pressionar a Ucrânia a anunciar uma investigação a Joe Biden — o democrata mais bem posicionado para concorrer contra Trump nas próximas presidenciais — e obstrução ao Congresso, por este orientar os funcionários da Casa Branca a não cooperar com as investigações. Para Galli, a “razão pela qual muitos não ficam chocados com isto é o facto de este Presidente ter rebaixado a ideia de moralidade” durante todo o mandato.

A partir daí, o editor dá alguns exemplos, como o facto de ter sido o próprio Trump a admitir “atos imorais nos negócios e no relacionamento com mulheres, dos quais se orgulha”. “Só o conteúdo que publica no Twitter”, prossegue Galli, “com a série habitual de caracterizações falsas, mentiras e calúnias, já é um exemplo quase perfeito de um ser humano moralmente perdido e confuso”. “Os factos”, acredita o editor, “são inequívocos”. E mesmo uma revista que habitualmente se dedica a temas exclusivamente religiosos, acha “necessário de vez em quando deixar claras as suas opiniões sobre questões políticas”.

“Uma revista de extrema esquerda, ou muito 'progressista', como alguns diriam, que se tem saído mal e que não está envolvida com a família Billy Graham há muitos anos, a 'Christianity Today', não sabe nada sobre ler uma transcrição perfeita de um telefonema de rotina”, reagiu de imediato Donald Trump

Curiosa é a referência a outro Presidente norte-americano, que também esteve para enfrentar um processo de impeachment, não fosse ter-se demitido antes, e que também mereceu comentários da "Christianity Today". Foi em 1998. “Infelizmente, as palavras que aplicámos a [Bill] Clinton há 20 anos aplicam-se quase perfeitamente ao nosso atual presidente”, lê-se no editorial de 2019. As palavras eram de reprovação do comportamento do, à época, Presidente norte-americano, que foi alvo de um processo de destituição por causa de um escândalo sexual com uma estagiária, Monica Lewinski.

“Para muitos evangélicos que continuam a apoiar Trump, apesar da sua moral sombria, podemos dizer o seguinte: lembre-se de quem você é e a quem serve”, escreve Galli, apelando à fé. “Pense na forma como a sua justificação do Sr. Trump influencia o testemunho perante o seu Senhor e Salvador. Considere o que um mundo incrédulo dirá se continuar a ignorar as palavras e o comportamento imorais de Trump (...). Se não revertermos o rumo agora, alguém tomará com seriedade qualquer coisa que digamos sobre justiça e retidão nas próximas décadas?”

“Acho que a revista 'Christianity Today' está à procura de Elizabeth Warren, Bernie Sanders ou de socialistas/comunistas, para proteger a sua religião. Que tal o 'Sonolento Joe'? O facto é que nenhum presidente jamais fez o que eu fiz pelos evangélicos ou pela própria religião!”, escreveu Trump no Twitter

A FÚRIA E A DÚVIDA

Donald Trump é muito popular entre a comunidade evangélica, pelo que foi sem surpresa que o editorial da "Christianity Today" gerou debate de imediato. O Presidente respondeu no dia seguinte no Twitter, acusando a revista de ser de “extrema-esquerda” e referindo-se ironicamente a uma alegada tentativa de colocar os democratas Elizabeth Warren e Bernie Sanders, também potenciais candidatos à Casa Branca, a “proteger a religião” cristã evangélica. “Ou que tal o 'sonolento Joe' [Biden]? O facto é que nenhum Presidente fez tanto pelos evangélicos como eu fiz, ou pela religião”, acrescentou Trump, na mesma rede social.

O certo é que Mark Galli não recuou. Numa entrevista concedida este domingo ao programa “Face the Nation”, do canal CBS, reafirmou a “imoralidade” do ocupante da Casa Branca. “Estou a fazer um julgamento moral, de que ele é moralmente inapto, ou, de forma mais precisa, é a sua moralidade pública que o torna inapto”, afirmou.

Depois das respostas de Trump e do apoio dos evangélicos signatários da carta, resta agora a dúvida sobre que impacto o episódio pode ter no apoio popular que seria necessário para fazer cair o Presidente no processo de impeachment — ainda que a maioria republicana no Senado torne improvável essa destituição —, ou numa hipotética e muito provável recandidatura de Trump à Casa Branca. Em 2016, o empresário ganhou com 81% dos votos dos cristãos evangélicos brancos, que ‘desculparam’ a infidelidade matrimonial admitida pelo próprio, bem como os comentários ofensivos sobre e para as mulheres.

Porém, o caso espoletado pela "Christianity Today" pode aumentar um descontentamento já latente nalgumas sondagens. De acordo com um inquérito feito pelo canal Fox News, próximo do Presidente, cerca de 51% dos americanos estão a favor da destituição. Mais preocupante para Trump é que um em cada dez evangélicos brancos querem o mesmo destino. Donald Trump recolhe agora um apoio um pouco abaixo dos 70% entre esta comunidade, consideravelmente menos do que há três anos.

Recorde-se que a "Christianity Today" foi fundada pelo pastor evangélico Billy Graham, conhecido por “a metralhadora de Deus”, pelo estilo corrosivo. O filho é Franklin Graham, um dos principais apoiantes de Trump e um dos responsáveis pelo movimento de apoio à recandidatura. Franklin reagiu contra o editorial da própria revista e divulgou ainda o voto do pai em 2016 — Billy Graham morreu no ano passado e, segundo o filho, votou por Trump.