A realidade é tão tenebrosa quanto isto: numa única semana, três pessoas com ligação a tiroteios ocorridos em escolas nos EUA nos últimos anos, incluindo dois sobreviventes do recente massacre de Parkland, na Flórida, suicidaram-se. É o caso de Sydney Aiello, que tinha 19 anos e cujo corpo foi encontrado a 17 de março, e de um outro estudante da Stoneman Douglas High School que se “terá aparentemente suicidado”, de acordo com as autoridades, a 23 de março. Jeremy Richman, pai de uma rapariga de seis anos anos que morreu durante o tiroteio na escola primária de Sandy Hook, em dezembro de 2012, em Newtown, no estado do Connecticut, foi encontrado morto dois dias depois, a 25.
O suicídio dos três marcou o primeiro aniversário da “Marcha pelas nossas vidas”, convocada pela primeira vez no ano passado em resposta ao tiroteio em Parkland, que fez 17 vítimas mortais em fevereiro de 2018. Protestou-se nessa altura contra a violência com armas de fogo e o mesmo aconteceu no sábado passado. Milhares de pessoas reuniram-se em várias cidades-norte americanas — como Washington, Nova Iorque, Atlanta, Boston, Chicago, Cincinnati, Dallas, Houston, Miami, Minneapolis, Nashville, Los Angeles e Seattle — mas também em Londres e em várias cidades do Canadá para exigir a adoção de medidas de controlo mais rigorosas no acesso às armas de fogo. Só em Washington, ter-se-ão reunido pelo menos 800 mil pessoas, afirmaram várias fontes ligadas à organização dos protestos à imprensa norte-americana.
Será à partida impossível saber porque é que Sydney Aiello se suicidou mas as recentes declarações da sua mãe à estação televisiva WFOR-TV, com sede em Miami, podem ajudar a decifrar isso — segundo ela, a estudante de 19 anos sentia-se “culpada por ter sobrevivido” ao tiroteio que matou alguns dos seus amigos mais próximos. Além disso, tinha sido diagnosticada com stress pós-traumático. Sydney Aiello estava no último ano e fazia parte da claque feminina da equipa de futebol da escola. No ano passado, e depois da tragédia, partilhou uma mensagem no Facebook de homenagem a algumas das vítimas, apelando aí à importância de “estar atento àqueles que amamos, incluindo os que aparentam ser mais fortes”.
Dias depois da sua morte, a 25, chegava a notícia de um outro suicídio “aparente” de um estudante da mesma escola. Quase nenhuma informação foi avançada, excepto que o jovem era mais novo do que Sydney Aiello ou pelo menos frequentava uma turma de um nível anterior, segundo a WFOR-TV. Também não se sabe com toda a certeza que a morte dele esteja relacionado com o tiroteio de Parkland, mas é essa a principal suspeita.
Depois do suicídio ou “aparente” suicídio dos dois, vários líderes da comunidade de Parkland pediram aos pais de estudantes para se manterem “vigilantes” e para serem “proativos” no que diz respeito a possíveis, aliás necessárias, conversas com os filhos sobre o tiroteio. “Temos mesmo de garantir que toda a gente, e em especial os pais, estão atentos e compreendem que os seus filhos podem estar em risco”, afirmou Ryan Petty, que perdeu um filho no massacre e tem outro que sobreviveu.
Um antigo estudante da escola em Parkland, David Hogg, também fez um apelo mas no Twitter: “Deixem de dizer simplesmente aos vossos filhos que eles vão conseguir ultrapassar isto. É impossível ultrapassar uma coisa que nunca deveria ter acontecido”. O “trauma e a dor da perda não desaparecem, a não ser que se aprenda a lidar com isso através de programas de apoio”, disse ainda o jovem, segundo o qual “todo o dinheiro que Trump quer gastar na compra de armas para professores deveria destinar-se ao reforço da saúde mental dos estudantes”. “Isso sim, salvaria vidas.” O apelo há de ter sido ouvido, ou não tivesse entretanto a direção do serviço de emergências da Flórida entrado em contacto com as autoridades para aprovar mais recursos para essa área, conforme anunciou o próprio no Twitter.
A União Americana para as Liberdades Civis alertava precisamente para isso num relatório divulgado a 12 de março. As escolas públicas norte-americanas , dizia o documento, precisam de mais especialistas em saúde mental e menos polícias. De acordo com o relatório, quase um terço dos estudantes de escolas públicas, isto é mais de 14 milhões, têm polícias a controlá-los mas não têm psicólogos, enfermeiros ou assistentes sociais.
“Todos os dias tentamos encontrar algo que nos faça sentir que o mundo é um lugar bom para estar”
A terceira vítima desta semana dramática é Jeremy Richman, 49 anos e pai de uma rapariga de seis que morreu em dezembro de 2012, durante o tiroteio na escola primária de Sandy Hook, em Newtown, no estado de Connecticut (morreram 20 crianças e seis adultos no total). O seu corpo foi encontrado na passada segunda-feira no escritório onde trabalhava. Jeremy Richman passara os últimos anos a tentar canalizar a dor da perda para iniciativas em prol da comunidade, tendo inclusive criado uma fundação, Avielle Foundation, focada na prevenção da violência em todos os contextos.
Em 2013, deu uma entrevista à CNN em que falava sobre a morte da filha: “Todos os dias temos de nos levantar da cama e eu e a minha mulher tivemos algumas ideias para nos obrigar a isso. Todos os dias tentamos encontrar algo bonito, algo que nos faça sentir que o mundo é um lugar bom para estar. E todos os dias queremos ter a certeza de que pelo menos tentamos dar algo bonito ao mundo.”
A fundação que criou divulgou um comunicado em que afirma que a missão de Jeremy Richman continuará a ser cumprida tanto pelos que lhe eram próximos, como por tantos outros pais, amigos e irmãos de vítimas do tiroteio na escola primária.