Internacional

Diário de um português no coração do Brexit

Era suposto o Reino Unido deixar a União Europeia esta sexta-feira, 29 de março, mas já não é certo. Certo é que não há forma de escapar a um tema que tomou conta por completo do dia a dia dos britânicos e dos não britânicos que vivem no país. Aconteça o que acontecer, nada será como dantes

Nos últimos 20 anos, aprendi a gostar de chá e a conduzir no lado errado da estrada. Casado com a escritora inglesa Christina Lamb, troquei o sol do Estoril por uma casa em Londres, onde diariamente se testam os méritos da mais velha aliança do mundo. Nos últimos tempos, o ‘Brexit’ tomou conta da vida da minha família — e de tantas outras — do Reino Unido.

Terreno O jornalista Paulo Anunciação numa das várias manifestações motivadas pelo ‘Brexit’

4 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA

Hoje fomos ao teatro ver uma reposição de “Barber Shop Chronicles”, uma peça fascinante e divertida escrita pelo nigeriano Inua Ellams. Depois do teatro encontrámo-nos com Nicolas Kent, que nos tinha oferecido os bilhetes. Nick é um homem encantador, de 74 anos. Ao longo de três décadas, foi encenador e diretor artístico do Tricycle Theatre, em Londres, um teatro que criou, com ele, uma enorme tradição de intervenção política. Quando a conversa aterrou, invariavelmente, no tema ‘Brexit’, Nick fez uma revelação surpreendente. O pai dele era um empresário judeu alemão que se refugiara na Inglaterra em 1936. Durante a guerra, mudara o nome de Kahn para Kent. Os Kahn judeus que ficaram para trás, na Alemanha nazi, acabaram nos campos de extermínio do Holocausto. Nick contou-nos, agora, que tinha pedido a nacionalidade alemã, ao abrigo da legislação germânica que reconhece o direito aos descendentes de judeus alemães — como o pai — que tinham fugido do país e perdido a nacionalidade por força de um decreto nazi de 1941. “Porquê a Alemanha? Por um lado, por repulsa do isolacionismo do ‘Brexit’. Mas também por admiração pela nova Alemanha”, explicou Nick. “E, já agora, para continuar a ter um passaporte da União Europeia.” Ele não é o único. Mais de 3600 britânicos descendentes de judeus alemães pediram a nacionalidade do mesmo país cujo regime, no século passado, dizimou tantos dos seus avós e tios-avós.

12 DE JANEIRO, SÁBADO

Outra estatística de início de ano. Em 2018, a República da Irlanda recebeu quase 200 mil pedidos de nacionalidade apresentados por cidadãos britânicos. O Governo, em Dublin, teve de aumentar o número de funcionários, de forma a lidar com o aumento de pedidos, que mais do que duplicaram desde o referendo de 2016. Quem for neto de irlandês nascido na Irlanda tem grande possibilidade de receber passaporte.

13 DE JANEIRO, DOMINGO

Costuma dizer-se, por aqui, que houve 17 milhões de razões para deixar a União Europeia — uma por cada eleitor que votou a favor do ‘Brexit’ no referendo de 23 de junho de 2016 (na verdade, foram 17.410.742 votos a favor do ‘Brexit’). Na noite do referendo, lembro-me de ver uma reportagem do Channel 4 num lugarejo do País de Gales profundo. Esta região receberá, no total, mais de 2 mil milhões de libras dos fundos estruturais da União Europeia no período entre 2014 e 2020. Em termos per capita, o País de Gales recebe mais do dobro de qualquer outra região do Reino Unido. A maioria dos galeses (53%), no entanto, escolheu o ‘Brexit’. Na reportagem, uma eleitora, idosa, queixava-se da União Europeia. Ela votara ‘Brexit’, explicou, porque alguém mandara demolir uma casa de banho pública de que ela gostava particularmente no centro da aldeola. As motivações para o voto, de facto, surpreendem. O meu sogro, por exemplo, que sempre votou no Partido Trabalhista, anunciou que ia votar a favor da saída da União Europeia apenas por causa de uma enorme antipatia em relação ao (então) primeiro-ministro David Cameron. Menino rico, neto de baronete, com o cabelo sempre impecavelmente puxado para trás da testa luzidia, Cameron teve o percurso típico (colégio de Eton, Universidade de Oxford, Partido Conservador) e exibe aquela enorme autoconfiança, quase arrogância, de uma classe privilegiada que o meu sogro tanto despreza. O meu sogro tem mais de 90 anos e, infelizmente, não é totalmente independente em termos de mobilidade. No dia do referendo, a minha sogra foi votar (ela é fervorosamente contra o ‘Brexit’). Deixou o marido em casa sozinho.

18 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA

A família da minha mulher está dividida ao meio, como o resto do país. Logo em junho de 2016, eu comentei que essa divisão coincidia, curiosamente, com a divisão entre quem estudou ou quem não estudou na universidade. Ou seja: os familiares dela que têm estudos superiores votaram contra o ‘Brexit’; os familiares que não têm estudos superiores votaram a favor do ‘Brexit’. A minha mulher fica incomodada com esta conversa. Claro que nem sempre se devem fazer generalizações deste tipo. É muito provável, por exemplo, que todos os racistas britânicos tenham votado a favor da saída da União Europeia. Mas será que os 17,4 milhões que votaram a favor do ‘Brexit’ são racistas? Claro que não. Um terço do eleitorado britânico que pertence a uma minoria étnica votou ‘Brexit’. O saldo migratório no país atingiu um número recorde de 333 mil pessoas durante o último ano do Governo do primeiro-ministro David Cameron e da então ministra da Administração Interna Theresa May — as mesmas duas pessoas que passaram anos a garantir que iriam reduzir drasticamente a imigração. Aquela estatística oficial dos 333 mil, divulgada no dia 29 de maio de 2016 — a poucas semanas do referendo —, foi talvez o fator que mais influenciou a vitória do ‘Brexit’. Não deixo de reparar, no entanto, num estudo sobre o referendo de 2016 publicado hoje nas páginas da “Economist”. Parece que, afinal, mais de dois terços dos eleitores com estudos superiores votaram a favor da permanência na União Europeia, enquanto 70% dos eleitores que só têm a escolaridade obrigatória votaram a favor do ‘Brexit’. Vou a correr, de revista na mão (e sorriso de vitória nos lábios), mostrar o artigo à minha mulher.

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20 DE JANEIRO, DOMINGO

Café e bolo na Lisboa Patisserie, em Golborne Road, a dois passos de Portobello. Nos últimos anos, os pastéis de nata tomaram conta de Londres. Mas eu continuo fiel aos da Pastelaria Lisboa, que abriu há 33 anos, numa rua onde antiquários e restaurantes muito cool começam agora a tomar o lugar das antigas lojas de portugueses e de magrebinos. Na fila de mesas de pedra fria, debaixo do painel de azulejos com uma imagem da Lisboa quinhentista, um grupo de mulheres portuguesas discute a subida dos preços nos supermercados londrinos. O Reino Unido importa mais de metade da comida que consome. A libra valia mais de 1,40 euros em 2015 e 1,26 euros na véspera do referendo de 2016. Agora ronda 1,11 euros, sem quaisquer sinais de uma tendência inversa.

23 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA

“Na manhã seguinte ao referendo tivemos uma reunião plenária de docentes e lembro-me de ver várias pessoas a chorar”, conta-me o professor João Paulo Silvestre, do King’s College London. Hoje à noite, um grupo de professores e alunos desta universidade — que tem, com orgulho, a mais antiga (1919) cátedra de Estudos Portugueses no país — organizou um serão de poesia e música lusófonas na capela. Poemas de Sophia, José Régio, Ana Luísa Amaral, Ramos Rosa, entre outros. Por vezes ditos com um inesperado toque tropical. No final, entre azeitonas e um copo de vinho, Silvestre explica que o ‘Brexit’ pôs em risco a componente europeia dos cursos de línguas modernas e que nos últimos dois anos houve um decréscimo de 50% no número de estudantes britânicos. Mas o número de portugueses no King’s College aumentou. “Por enquanto, os portugueses ainda pagam a mesma coisa que os britânicos, mas com o ‘Brexit’ não sabemos se vai continuar assim.” Como numa corrida aos últimos dias de saldos.

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26 DE JANEIRO, SÁBADO

Jantar em casa de M., embaixadora do Reino Unido e amiga da minha mulher. Numa fase de transição entre o último posto (num país do Médio Oriente) e o próximo posto (num país africano), M. está a passar uma temporada a trabalhar em Londres, no Foreign Office, o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Ela é surpreendentemente franca nas críticas ao antigo ministro Boris Johnson. No dia 6 de julho de 2018, Johnson apoiou o chamado Chequers Plan, proposto pela primeira-ministra Theresa May. Mas quando soube que o ministro do ‘Brexit’, David Davis, pedira a demissão, Boris Johnson não quis ficar para trás. No dia 9 demitiu-se do Foreign Office. “Não imaginam o enorme suspiro de alívio que se ouviu em todos os gabinetes e corredores”, diz M. Como ministro, Boris Johnson tinha dificuldade em concentrar-se nos detalhes da diplomacia e da política externa. “Um bluff total. Mal preparado, desinteressado, preocupava-se unicamente na autopromoção. Não havia um único ministro europeu que o levasse a sério.” Johnson regressou entretanto ao seu antigo lugar, na retaguarda da bancada parlamentar. “The Daily Telegraph” ofereceu-lhe um contrato de 275 mil libras (320 mil euros) anuais para escrever uma coluna semanal. Todas as segundas-feiras, Johnson — figura maior do projeto ‘Brexit’ — enche as páginas do jornal com uma foto em pose churchilliana e um texto que mistura as habituais metáforas, as citações pretensiosas de clássicos e os comentários pouco coerentes sobre o ‘Brexit’, a fronteira na Irlanda ou o futuro glorioso da nação. “The Daily Telegraph”, por sinal, é o único diário generalista que mantém o antigo formato broadsheet — o tamanho ideal, explicaram-me, para os ingleses que querem esconder-se e evitar a todo o custo o contacto visual com estranhos no metropolitano.

28 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA

No final do ano passado abriu um novo oculista no nosso bairro. A minha mulher usa óculos para escrever e não estava contente com o serviço desinteressado que recebeu no Boots local, a gigantesca rede de farmácias-oculistas-artigos de saúde presente na rua principal de qualquer cidadezinha das Ilhas Britânicas. Hoje de manhã, ela foi visitar a nova loja, descrita algo pomposamente como “boutique independente de ótica”. Pouco depois, uma mulher que parecia ter 30 e poucos anos entrou de rompante na loja. Trocou umas palavras de circunstância com o empregado, pegou no saco que a loja já tinha preparado e perguntou, ansiosa: “Para 12 meses?” “Sim, para 12 meses”, garantiu o empregado. Ela correu de volta para o Lexus preto que deixara na rua com o motor a trabalhar e as quatro luzes a piscar. 12 meses de lentes de contacto são muitas lentes de contacto. “‘Brexit!’”, suspirou o empregado. “Alguns dos nossos clientes estão a abastecer-se para o que der e vier.”

2 DE FEVEREIRO, SÁBADO

Jantar de família, em nossa casa. Chris Heaton-Harris é casado com Jayne, prima direita da minha mulher. Chris foi deputado europeu durante 10 anos. Em 2010 foi eleito para o Parlamento nacional e agora é igualmente secretário de Estado no Governo de Theresa May, no Department for Exiting the European Union — mais conhecido, apenas, como Ministério para o ‘Brexit’. Antes de ser chamado para o Governo, Chris presidiu durante anos ao European Research Group, o bloco de deputados conservadores mais eurocéticos. Falamos sobre as férias na América do Sul, os filhos, as novidades do Netflix ou mesmo sobre futebol (Chris foi árbitro federado). Como em tantas outras famílias britânicas, hoje em dia, a conversa sobre o ‘Brexit’ e a Europa não chega à mesa de jantar. Por uma questão de maneiras. Chris está com menos cabelo e pareceu-nos mais velho (“É o que acontece a quem defende o ‘Brexit’”, comentou a minha sogra, com enorme crueldade, no dia seguinte).

3 DE FEVEREIRO, DOMINGO

Passeio pelo Hyde Park, incluindo uns minutos no Speakers’ Corner, na extremidade do parque perto de Marble Arch. Lembro-me de ir lá em criança com o meu pai. Ele nunca foi grande anglófilo, talvez porque nunca chegou a dominar a língua inglesa tão bem quanto a francesa (a França era a mãe-pátria, e as duas semanas de férias em Paris, em setembro, eram uma espécie de ritual sagrado). Mas lembro-me de como admirava o Speakers’ Corner. Naquele canto do Hyde Park, aos domingos, ele olhava com fascínio aquele punhado de oradores espontâneos que, de pé num caixote de madeira, discursavam sobre tudo e mais alguma coisa, esbracejavam e debatiam com quem parasse para ouvir, mantendo viva a tradição britânica da liberdade de expressão. Essa tradição continua. Os oradores, hoje, trocaram os caixotes de madeira por pequenos escadotes de alumínio, e a maioria dos discursos e dos debates parece ser sobre religião. Quando chegámos, um americano de calças vermelhas, botas e chapéu texano tentava responder com trechos da Bíblia às interpolações provocatórias de um grupo de jovens. As interrupções e os protestos fazem parte do Speakers’ Corner. Outro orador pregava o evangelho do veganismo. Um outro ainda dizia-se representante do partido Justice for Men & Boys, um tal J4MB de defesa dos direitos dos homens e dos rapazes. Curiosamente, não havia ninguém a debater as virtudes e os defeitos da União Europeia ou do ‘Brexit’. A tradição do Speakers’ Corner existe há mais de um século, e os casos de violência são raríssimos. Dois agentes estavam sentados, mais ou menos aborrecidos, dentro de um carro da Metropolitan Police arrumado por perto. “A única vez em que vi confusão por aqui foi por causa de uma discussão sobre o ‘Brexit’”, diz-me Mike, um dos ativistas do J4MB.

6 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA

Karen Dacre, editora de moda do “London Evening Standard”, encontrou um paralelo entre o ‘Brexit’ e o famoso Lipstick Index, o Índice Batom, inventado por Leonard Lauder, patrão da gigante do mundo da cosmética Estée Lauder. Segundo as leis daquele índice, as vendas de batom costumam aumentar de forma significativa em tempos de crise económica. Dacre garante que o número anormal de vestidos de cor amarela vendidos nas últimas semanas, no Reino Unido, está ligado ao ‘Brexit’. Tal como o batom, os vestidos de cor radiante atualmente bestsellers na Boden e na Net-A-Porter serão uma espécie de antídoto contra a ‘Brexhaustion’ (a exaustão provocada pelo tema ‘Brexit’) ou a BAD (de ‘Brexit’ Anxiety Disorder, ou perturbação de ansiedade provocada pelo ‘Brexit’). Vou estar mais atento nas ruas de Londres.

hANNAH MCKAY/REUTERS

8 DE FEVEREIRO, SEXTA-FEIRA

Com o novo livro quase pronto e a entrar na fase de revisões, a minha mulher pondera a possibilidade de aceitar ou não um convite para participar numa conferência-debate em Paris. A palestra seria na quinta-feira, e a perspetiva de um fim de semana alargado a explorar as livrarias, os cafés e as galerias dos quartiers parisienses anima a conversa do pequeno-almoço. Mas há um problema. A conferência está marcada para a primeira semana de abril. E de repente tudo muda na imagem que se guarda das viagens Londres-Paris. Em vez do copo de champanhe na estação de St. Pancras e do rápido controlo fronteiriço, com passaporte eletrónico, antes de se entrar no comboio Eurostar — que nos deixa no centro de Paris umas duas horas e pouco mais tarde —, surge esta imagem meio nebulosa, a preto e branco, de uma locomotiva a vapor, de enormes filas, crianças a chorar, apitos e gestos frenéticos dos guardas ferroviários, comboios atrasados ou cancelados. A primeira semana de abril será, em princípio, a primeira semana do Reino Unido após o ‘Brexit’. Decidimos não arriscar.

13 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA

Parece que não fomos os únicos a pensar assim. Os operadores turísticos queixam-se de um abrandamento significativo no número de reservas feitas em janeiro e fevereiro, os meses em que tradicionalmente os britânicos programam as suas férias de verão. As famílias têm medo de filas nos portos e aeroportos, cancelamentos ou mesmo eventuais problemas nas estradas europeias (no caso de ‘Brexit’ sem acordo, as cartas de condução britânicas deixarão de ser válidas na União Europeia, a não ser que estejam acompanhadas por uma licença internacional). Os operadores turísticos passaram a incluir a chamada “taxa ‘Brexit’” nos pacotes — uma taxa que pode chegar aos 8% e que será cobrada no caso de um “aumento demonstrável” dos custos de um pacote provocado por variações cambiais significativas ou novas taxas e impostos. “Mudámos os planos das férias da Páscoa. Vamos para Devon em vez de ir para Portugal. Ficámos com medo das eventuais filas nas fronteiras, poucos dias depois do ‘Brexit’. Temos crianças de 10 meses e de 5 anos e não quisemos correr o risco”, explica Charlotte Butler, diretora de uma agência de consultoria, nas páginas do “The Times” de hoje.

17 DE FEVEREIRO, DOMINGO

Primeiro foi Sir James Dyson, inventor da tecnologia ciclone para aspiradores. Em janeiro ficámos a saber que a sede da Dyson vai mudar-se do Reino Unido para Singapura. Hoje é a vez de Sir Jim Ratcliffe. O homem mais rico das Ilhas Britânicas, dono da gigante petroquímica Ineos, vai mudar-se para o Mónaco. Tanto Dyson como Ratcliffe são dois brexiteers que passaram horas a garantir-nos, durante a campanha, que o ‘Brexit’ iria ser um êxito. Mas depois decidem que o melhor, mesmo, é não ficar cá a desfrutar desse êxito.

19 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA

Antigamente, a barreira maior, intransponível, era a da religião: protestante não devia/podia casar com católico, ponto final. Mas isso é coisa do passado. Agora, até mesmo o herdeiro da Coroa britânica está autorizado a casar com católicos (o decreto de 1701 foi alterado em 2013). O anátema, hoje em dia, é diferente. Anda à procura de amor? Então não mencione o ‘Brexit’. Segundo uma sondagem da YouGov, 37% dos remainers (a favor da União Europeia) fariam tudo para travar o casamento de um familiar que tivesse o desaforo de querer desposar um apoiante do ‘Brexit’. Gillian McCallum, CEO da DDM — a mais antiga agência matrimonial do país, fundada na década de 1980 —, aparece nas páginas de vários jornais do dia. A DDM cobra 6800 libras, quase 8 mil euros, por cliente. Os homens, diz ela, não são tão exigentes quanto as mulheres. “A primeira coisa que eles pedem é bondade e gentileza e a segunda é nada de cirurgias plásticas.” As clientes femininas procuram, em primeiro lugar, homens altos. Mas, segundo McCallum, o ‘Brexit’ tornou-se a palavra referida mais vezes pelos clientes da agência como obstáculo intransponível a um potencial relacionamento. “Os remainers são mais irredutíveis. Eles pura e simplesmente recusam qualquer encontro romântico com um candidato que seja a favor do ‘Brexit’”, diz. A senhora tem 40 anos, dentes perfeitos, um colar de pérolas e uma longa cabeleira castanha, de duquesa. Curiosamente, continua solteira.

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19 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA (II)

A Honda anunciou agora que vai fechar a fábrica de Swindon, no sudoeste da Inglaterra, até 2021. Pelo menos 3500 pessoas vão perder o emprego. Algumas semanas antes, outro fabricante automóvel japonês, a Nissan, anunciara que a produção dos SUV X-Trail iria deixar de ser feita em Sunderland, no nordeste da Inglaterra. Esta fábrica emprega mais de 7 mil trabalhadores. As marcas japonesas usam o Reino Unido como plataforma para a Europa, mas o ‘Brexit’ complica esse arranjo. A Nissan foi bem clara, justificando a decisão com a “incerteza continuada à volta da relação futura do Reino Unido com a Europa”. Num artigo no “The Sunday Times”, no entanto, o antigo ministro do ‘Brexit’, David Davies, não perde o otimismo. Os fabricantes de automóveis na Alemanha, diz ele, vendem cerca de um terço dos seus carros no Reino Unido e estão em pânico com a possibilidade de perder o acesso ao mercado britânico. Este foi, aliás, um tema forte da campanha do ‘Brexit’: a Europa precisa mais de nós do que nós precisamos dela e por isso vai tudo correr bem. Mas será mesmo assim? Na verdade, apenas 17,6% dos carros exportados pela Alemanha vão para o Reino Unido. E quase 54% das exportações de automóveis britânicos vão para a UE. Quem terá, afinal, mais razões para pânico?

2 DE MARÇO, SÁBADO

Noite na Royal Opera House para uma das últimas apresentações de “The Monstrous Child”, uma ópera da escritora Francesca Simon e do compositor Gavin Higgins. Francesca é amiga da minha mulher e é conhecida, sobretudo, pelos livros infantis da série “Horrid Henry”, que venderam mais de 20 milhões de exemplares (“Henrique, o Terrível”, na tradução portuguesa, pouco feliz). No afterparty, não demora muito até alguém falar na ‘palavra que começa por B’. A história de “The Monstrous Child” é sobre uma miúda, filha do deus nórdico Loki, e da missão dela à procura de um lugar próprio no mundo da mitologia. Há quem veja um paralelo com a saga da Grã-Bretanha num mundo após o ‘Brexit’. Francesca parece mais preocupada com Louis e a possibilidade de ele deixar de poder viajar livremente com ela para a casa no sul de França. Louis é um Spaniel Tibetano. As viagens para lá da Mancha nunca são um problema (o cão tem um passaporte comunitário). Chegou a altura, talvez, de me esconder num canto. Fixo-me no ecrã do telemóvel, peneirando rapidamente as mensagens que me chegam do Porto e de Lisboa. Outros deuses, outra saga mitológica, lutavam naquela altura no relvado do Estádio do Dragão. Esqueci o ‘Brexit’.

4 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA

O turbilhão do referendo deixou o país dividido, quebrado ao meio. O impasse no Parlamento vai prolongar-se, provavelmente, até meados de março. Será que vai vingar a versão do ‘Brexit’ proposta por Theresa May (e que ninguém quer)? Ou teremos um ‘Brexit’ duro, sem acordo ou sem período de transição? Ou um adiamento do ‘Brexit’? Ou mesmo um novo referendo? Ninguém sabe o que vai de facto acontecer nas próximas semanas. Mas é sempre bom ver que os ingleses não perdem o sentido de humor. Quando entro na pequena livraria familiar na rua principal do meu bairro, reparo no anúncio perto da secção de ficção: “Nota da Direção — Os livros da secção de Ficção Pós-Apocalíptica passaram para a secção de Política Atual.”