Não haverá resultados imediatos ou espetaculares, mas eles virão. Apesar das críticas que recebeu, principalmente da parte de vários cardeais da Igreja católica, o encontro mundial sobre a pederastia de uma parte do clero, que termina este domingo, deverá ser considerado um marco e uma mudança, cujo alcance é por agora impossível de prever.
Pela primeira vez, e após anos e anos a tratar o tema de uma maneira secreta e isoladamente por países, um Papa reuniu todos os protagonistas a fim de encontrar uma solução global. Participaram as vítimas dos abusos, os presidentes das 144 conferências episcopais de todo o mundo, todos os “ministros” do Vaticano, os superiores das ordens religiosas masculinas e femininas, e mulheres especialistas no tema. Ao todo são 190 pessoas, que constituem as instâncias máximas do catolicismo.
Francisco entregou a todos os presentes 21 pontos sobre os quais é preciso trabalhar até se alcançar uma abordagem global para uma praga que, embora represente apenas entre 1% e 2% do total dos menores que sofreram abusos sexuais no mundo, afeta quase todos os países da esfera católica.
Entre esses 21 pontos, as novidades que se perfilam a respeito do passado são o levantamento do segredo pontifício sobre o tema dos abusos, a instituição de uma comissão externa, ou seja, não eclesiástica, para avaliar cada um dos casos (cerca de 400 em média anual) e a criação de um instrumento jurídico para “julgar” os bispos negligentes ou encobridores de pederastas.
Além destes três aspetos, que comportariam a mudança de rumo, a partir de Roma irá perfilar-se melhor no futuro imediato como devem agir os bispos de todo o mundo com as autoridades civis. Trata-se de decidir se perante uma denúncia de abuso o bispo tem de assinalá-la imediatamente à magistratura penal, ou examinar primeiramente o caso e só o comunicar quando houver a certeza de que se trata de um facto realmente ocorrido.
Sobre isto, as associações das vítimas ou “sobreviventes” – entre elas a ECA e a SNAP — levantaram a voz, reclamando tolerância zero em relação aos padres pederastas. Em concreto, isso significa a imediata “destituição do estado clerical” aos acusados. O cardeal Charles Scicluna, que é quem mais entende de abusos por ter sido o procurador do Vaticano para tais casos, manifestou o seu apoio à iniciativa.
Pelo contrário, numerosos bispos que participam no encontro do Vaticano manifestaram-se contra o antigo tribunal para julgar os bispos negligentes ou encobridores. “Um tribunal já pressupõe um juízo”, disseram, pedindo que se proceda de outro modo. “Não existem alternativas à rastreabilidade e à transparência”, declarou Reinhard Marx, presidente da conferência episcopal do seu país.
O cardeal proporcionou uma revelação até agora desconhecida, e cujo alcance futuro é difícil de avaliar. “Os processos que teriam podido documentar esses terríveis actos e indicar os nomes dos responsáveis foram destruídos ou não chegaram a ser criados”. A frase deveria significar que algum ou alguns burocratas do Vaticano teriam destruído parte da documentação sobre os factos passados, embora até agora mais ninguém o tenha explicado. Para a próxima segunda-feira o Vaticano organizou uma sessão especial para os meios de informação de todo o mundo que acorreram a Roma, a fim de ilustrar melhor as conclusões da cimeira sobre os abusos.
Enquanto os 190 presentes debatiam as propostas do Papa e uma das freiras presentes acusava os bispos de hipocrisia, pelas ruas de Roma – e pela primeira vez na história — desfilavam umas 50 vítimas dos abusos clericais, procedentes ou representantes de mais de 22 países. “Nós estamos a aproximar-nos do Vaticano, que este se aproxime de nós”. Transportavam cartazes onde constavam, entre outras, frases como “tolerância zero” e “o milagre de acreditar no Vaticano”. Ao princípio de cada uma das quatro jornadas, Francisco quis que os presentes ouvissem os testemunhos, alguns dos quais dilacerantes, de numerosas vítimas. “Nunca tinha ouvido uma vítima”, disse um bispo ao sair da sessão de sábado