Um painel de especialistas constituído por pediatras, médicos e magistrados apresentou esta segunda-feira ao primeiro-ministro francês um relatório no qual defende que qualquer relação sexual com penetração entre uma pessoa maior de idade e um menor de 15 anos deverá ser considerado violação. A recomendação vai ao encontro do que defende o Governo, que deverá apresentar no próximo dia 21 um projeto de lei nesse sentido.
O relatório - e a proposta de lei - surgem na sequência de dois casos que agitaram a opinião pública. Em novembro, um homem de 30 anos foi ilibado da violação de uma menina de 11 anos, depois de o tribunal ter considerado que a criança não tinha sido submetida a “ameaças, violência ou surpresa”. Noutro caso, um homem de 28 anos foi acusado de relações sexuais com menor, em vez de violação. Os casos continuam na Justiça, mas voltaram a trazer o assunto para a ribalta. O problema é que para se processar alguém por violação tem de se provar que a relação sexual foi forçada.
Em Portugal, a idade a partir da qual os jovens podem iniciar uma vida sexual consentida é aos 14 anos. Não podem conduzir, não podem votar, não podem responder pelos seus atos perante a Justiça, mas podem tomar decisões sobre a sua própria sexualidade — embora com restrições até aos 16 anos, se o parceiro for maior de idade. O que, para o presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), João Teixeira Lopes, “de alguma maneira vai ao encontro do consenso existente na psicologia social e na sociologia sobre a própria aquisição da autonomia dos jovens”.
Sobre esta questão, Isabel Ventura, socióloga e professora na Universidade Católica do Porto, diz ao Expresso que “devemos pensar” sobre as razões pelas quais a lei abre uma exceção para a iniciação da vida sexual dos jovens, quando estabelece que o consentimento geral — que traduz uma “vontade séria, livre e esclarecida” e que pode ser “livremente revogado até à execução do facto” — só é “eficaz” a partir dos 16 anos.
Para o sociólogo João Teixeira Lopes, a lei é “equilibrada” e esta idade reflete, por um lado o facto de os jovens iniciarem “cada vez mais cedo” a sua atividade sexual e, por outro, a presença cada vez maior do assunto entre as sociedades juvenis, nos meios de comunicação e na própria família, “onde já não é tabu, já não é interdito”.
Já Ana Isabel Pereira, professora de psicologia clínica e de desenvolvimento na Universidade de Lisboa, considera que a idade entre os 14 e 15 anos pode ser “muito precoce para o consentimento sexual”, e explica que um jovem nestas idades “tem capacidade para tomar boas decisões a frio, mas numa situação em que exista maior ativação emocional, acaba por prevalecer uma maior orientação para a procura de sensações e, portanto, um maior envolvimento em comportamentos de risco”.
A maior parte dos países do espaço europeu – 17 dos 28 estados-membros – estabelecem os 14 e os 15 anos como as idades em que é admissível um adolescente iniciar uma vida sexual consentida. Itália e Alemanha são dois exemplos. E esta é a menor idade fixada na União Europeia (UE), de acordo com os dados da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais. Os outros países estabelecem idades superiores: dez determinam idades entre os 16 e os 17 anos, como Espanha e Bélgica, e há ainda um, Malta, que a fixa nos 18 anos.
“A Europa é um continente onde [no geral] a separação face à igreja, a secularização dos estados, é mais forte. Portanto, a lei vai tentando adaptar-se à realidade social, que mostra que os jovens adquirem mais cedo vontade sexual e vontade de autodeterminação”, explica o presidente da APS. Contudo, nos “estados teocráticos ou muito influenciados ainda pela igreja, [como é o caso de Malta], as idades de consentimento são maiores”, esclarece João Teixeira Lopes.
Hoje a “proteção das crianças e jovens fala mais alto”
Esta idade limite estabelecida na lei – embora seja definida de forma “arbitrária” –, prevê um “enquadramento sociocultural do que é hoje a emancipação juvenil das sociedades modernas”, esclarece João Teixeira Lopes. E regula também o que é ou não considerado crime, acrescenta Isabel Ventura, prevendo situações de abuso sexual de crianças e adolescentes.
Em Portugal, a lei prevê uma pena de prisão de um a oito anos para quem abusar sexualmente de um menor com idade igual ou inferior a 14 anos, segundo o Código Penal. E protege também os adolescentes entre os 14 e os 16 anos de situações em que uma pessoa maior de idade possa “abusar da sua inexperiência”. Segundo o sociólogo João Teixeira Lopes, “o acumular de experiências, competências e recursos pode gerar uma desigualdade de poder entre adultos e adolescentes, o que pode significar abuso e manipulação”. Embora não seja possível “medir ou quantificar com rigor o conceito de inexperiência”, Joana Carvalho, professora de Psicologia e Sexologia Forense na Universidade Lusófona, afirma que nestes casos “tem de haver a garantia que o jovem conhecia as implicações do ato sexual”.
Hoje a “proteção das crianças e jovens fala mais alto”, afirma João Teixeira Lopes, mas nem sempre foi assim. No início do século passado, a idade que distinguia um abuso sexual de uma relação consentida situava-se nos 12 anos. Na época, as idades das crianças e adolescentes não eram tidas em conta na hora de casar, conta o sociólogo e presidente a APS, sublinhando a “grave violação” dos direitos das crianças e adolescentes existente na altura. Também a socióloga Isabel Ventura salienta a evolução da “representatividade” das crianças e adolescentes na lei portuguesa: se hoje existe uma secção para os crimes de abuso sexual de menores, antes apenas existiam alíneas.
Em França, o debate voltou
Sobre o caso francês, a psicóloga Ana Isabel Pereira não tem dúvidas: uma criança com menos de 13 anos, em média, tem uma “maturidade cognitiva mais limitada e, portanto, não será tão capaz de consentir um ato sexual”.
A lei francesa prevê casos de abuso sexual de menores com idade igual ou inferior a 15 anos, em que os arguidos podem enfrentar uma pena de prisão até cinco anos. Mas nestes casos é necessário provar que não houve consentimento da criança e que o ato sexual foi forçado. Esta situação, segundo João Teixeira Lopes, gera “uma série de batalhas jurídicas que afrouxam a proteção das crianças e adolescentes”.
A avaliação do nível de desenvolvimento do menor e a existência de critérios de veracidade são os dois eixos principais segundo os quais decorrem as investigações em casos de abuso sexual de menores, explica a psicóloga forense Joana Carvalho. E é cada vez mais frequente haver, nos discursos jurídicos, avaliações da capacidade de consentir do menor tendo em conta a sua aparência física, sobretudo quando a vítimas é do sexo feminino, conta Isabel Ventura.
Nestes casos, as consequências que ficam variam consoante o contexto, a vida e a maturidade do menor. A psicóloga forense Joana Carvalho destaca dois tipos: as consequências físicas – que incluem doenças sexualmente transmissíveis, gravidez ou lesões genitais – e as emocionais, que vão desde o medo, a ansiedade, a hostilidade sem explicação aparente, os sintomas de depressão, a baixa autoestima até a comportamentos auto lesivos ou de suicídio. E tudo muda na vida destes jovens, muda a relação de confiança com os outros e a perceção de segurança, sublinha ainda a professora de psicologia Ana Isabel Pereira.
As leis têm um papel regulador e protetor destes jovens, mas não chegam — ou podem não chegar — para prevenir este tipo de abusos e neste aspeto há consenso entre especialistas. O sociólogo João Teixeira Lopes diz que a lei deve ser complementada com uma “educação sexual iniciada desde cedo no seio familiar e prolongada na escola, sem tabus, sem preconceitos, sem evitar falar dos assuntos difíceis”. Joana Carvalho reforça ainda o papel da família na “promoção de competências que lhes permita [aos jovens] gerir comportamentos e afetos dentro da esfera sexual e relacional, tomando consciência dos limites que permitem viver a sua sexualidade”.