A figura de presidente de câmara é hoje vista pelos portugueses como um verdadeiro canivete suíço — aquele que concentra, em si, as decisões, mas também sobre quem recaem expectativas e responsabilidades. Esta é uma das imagens fortes que sai do Barómetro do Poder Local, coordenado por Filipe Teles, pró-reitor da Universidade de Aveiro, que considera “surpreendente” a forma como os eleitores veem os municípios “como prestadores de serviços”.
De facto, os dados mostram que mais de metade (51%) dos participantes identificam a prestação de serviços públicos de qualidade e acessíveis como a “principal missão do poder local”. Esta ideia motiva o reconhecimento do papel positivo em áreas como as atividades de lazer, mobilidade ou ação social. Em sentido contrário, os cidadãos exigem mais intervenção municipal na habitação (80%), saúde (81%) e segurança (75%). “Este é um dos dados curiosos, porque tem a ver com a agenda política e pública dos debates atuais em Portugal. É precisamente aquilo em que as autarquias têm hoje menos intervenção”, aponta o especialista em governação e políticas públicas. O desfasamento entre o que se faz e o que se espera das câmaras é, assim, evidente.
“A transformação em curso no país está completamente assente no poder local, do PRR ao Portugal 2030”, recorda Luísa Salgueiro. “Somos nós que estamos a executar investimentos em escolas, habitação e equipamentos de saúde”, sublinha a presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). É, por isso, fundamental retomar a discussão pública sobre a descentralização e a transferência de competências do Estado central para as autarquias, em particular no que respeita aos recursos financeiros. “O processo de descentralização não pode parar. É preciso garantir que os municípios têm recursos adequados e autonomia para corresponder às expectativas dos cidadãos”, aponta.
Influência do poder local
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A questão, defendem os especialistas, não é apenas de recursos, mas também de legitimidade e voz. Apesar de o poder local ser considerado próximo, os cidadãos sentem-se afastados dos processos: 54% nunca participaram em qualquer reunião municipal. O barómetro mostra que a maioria concorda com a ideia de que “os políticos locais não estão interessados no que as pessoas como eu pensam”. Mas “participar já não chega”, diz Paulo Fernandes, presidente da Câmara Municipal do Fundão. “Temos de caminhar para a codecisão, em que os cidadãos influenciam efetivamente escolhas sobre espaço público e investimentos”.
Importância dos atributos dos candidatos
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É neste contexto que a descentralização ganha ainda mais relevância. Desde 2018, o Estado iniciou a transferência de 22 competências para os municípios, mas o processo está por concluir. O Governo prepara agora uma nova Lei das Finanças Locais para assegurar recursos “transparentes, previsíveis e justos” às autarquias. O processo, porém, só deverá avançar com a próxima gestão da ANMP, com os efeitos práticos a serem sentidos apenas em 2027.
Intenção de participação nas eleições autárquicas
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Os portugueses parecem de acordo com uma maior autonomia para as autarquias: 62% defendem esta ideia. Aliás, em países onde a descentralização é uma realidade palpável, os números recentes da OCDE mostram isso, mais de 60% das despesas locais são alocadas a saúde, serviços sociais, educação e cultura. Portugal encontra-se entre os países com mais de 60% das despesas municipais alocadas a serviços gerais e infraestruturas.
Mais intenções do que ações
Embora 69,3% dos inquiridos garanta que, com toda a certeza, pretende votar nas próximas eleições autárquicas de 12 de outubro, os dados históricos contrariam esta intenção. “Há alguma desafeição ao sistema político, desconfiança do sistema eleitoral, do sistema partidário e uma longa tradição de baixa participação cívica nos atos eleitorais”, confirma Filipe Teles. Contudo, a abstenção tem tendência a diminuir quando os atuais presidentes de câmara atingem o limite de mandatos, uma realidade que este ano afeta 89 autarcas. “Isso tem um efeito positivo sobre o número de votos”, insiste o coordenador do barómetro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O estudo deixa claro que o futuro do poder local depende de alinhar expectativas e capacidades. É preciso garantir uma descentralização eficaz, recursos adequados e fortalecer a participação cívica. “O cidadão acredita que quanto mais próximos dos problemas estiverem os meios, mais eficientes serão as soluções”, conclui Paulo Fernandes.