OS FACTOS
Ao longo das últimas décadas, a China foi posicionando-se como principal parceiro para a importação de bens para a União Europeia (UE), ultrapassando o peso dos Estados Unidos na balança comercial. De acordo com o Eurostat, em 2022 a China era o país de origem de 21% de todos os produtos importados para a Europa, enquanto as compras aos norte-americanos não iam além dos 12%.
A Rússia, por outro lado, representava no mesmo ano cerca de 7% do total de compras externas de bens da UE. Na importação de energia, o país liderado por Vladimir Putin assumia a liderança no fornecimento de petróleo, gás natural e outros combustíveis fósseis – em 2021, 28% tinha origem na Rússia e 9% nos Estados Unidos.
Porém, depois do estalar da guerra na Ucrânia, os 27 Estados-membros decidiram diminuir a sua dependência energética face à Rússia e impor sanções ao país. O conflito levou à alteração da balança comercial da UE no que à importação de energia diz respeito, como aliás deixam claro os dados do Eurostat.
No terceiro trimestre de 2022, a Rússia representava 14,4% do total de importações, enquanto os Estados Unidos não ultrapassavam 11,8%. A realidade inverteu-se no terceiro trimestre de 2023, com os norte-americanos a assumirem a liderança (17,7%) e a Rússia com apenas 3,9% do total.
3,9%
foi o total de energia importada a partir da Rússia para a União Europeia no terceiro trimestre de 2023, um valor muito abaixo dos 14,4% verificados no período homólogo de 2022
Ainda de acordo com o mesmo organismo comunitário, o apoio europeu à Ucrânia continua a reunir concordância de 56% dos cidadãos que identificam a guerra naquele país como sendo uma das suas principais preocupações. Logo a seguir na lista de temas, são a questão internacional, a situação económica e a influência da UE no mundo aquilo que mais preocupa os europeus.
COMO CHEGÁMOS AQUI
O desenho geopolítico do mundo não se faz em dois dias. As fronteiras do atual mapa das relações entre países e entre blocos não são ainda totalmente claras, numa altura em que se alteram as prioridades de cada um. “Os desafios que se colocam à Europa no pós-pandemia são muito diferentes”, aponta Henrique Burnay, que atribui responsabilidade a “razões externas” e à “necessidade de adaptar a UE à nova realidade internacional”.
O professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa lembra que “a viragem [dos EUA] para o indo-pacífico, desde Obama, e os anos da presidência isolacionista e confrontacional de Trump” levavam Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, a perceber que “a Europa teria de ter mais peso económico para ter mais relevância geopolítica”. Burnay acredita que a pandemia e depois a guerra vieram dar razão a von der Leyen, que dirige hoje um projeto europeu em transformação e adaptação à nova realidade internacional.
Ao mesmo tempo, e ainda durante o mandato de Donald Trump, as relações entre os Estados Unidos e a China deterioraram-se; mas também a forma como a UE olha para o país liderado por Xi Jinping se alterou. “A China já não é só um competidor económico, um rival estratégico e um parceiro em alguns domínios. A China passou a ser percebida como um desafio direto ao Ocidente”, continua o especialista.
“O problema da UE é que não é um decisor. A UE são 27 decisores e, portanto, isto é algo que vai sempre gerar muito debate”, aponta Lívia Franco
Vale a pena lembrar que, com especial fôlego depois do início da pandemia, a dependência da UE face à China levou o projeto europeu a reforçar a estratégia de reindustrialização. Até o motor de crescimento europeu, a Alemanha, que tem fortes relações económicas com a China, “está a mudar a sua posição” sobre aquele país – para isso, entre outras medidas, o ministro da economia alemão não quer continuar a apoiar as empresas nacionais a investir em território chinês. “Acho que a Alemanha, quando olha para a China e apesar de o ver como um parceiro muito importante porque a economia alemã é muito dependente das suas exportações, perdeu uma certa ingenuidade em relação ao modelo de interdependência”, acrescenta a especialista em relações internacionais Lívia Franco.
Porém, a diversidade cultural, social e política dos 27 Estados-membros torna difícil a missão de encontrar uma posição comum. O presidente francês, por exemplo, disse, a propósito do conflito China-Taiwan, que os europeus enfrentam “um grande risco” de serem “apanhados em crises que não são nossas, o que impede [a UE] de construir a sua autonomia estratégica”. “A alteração da relação da Europa com a China é um processo em curso e nada linear. Ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria, desta vez a interdependência económica entre os blocos em formação é profunda”, explica Henrique Burnay.
E isso representa igualmente um desafio para Portugal, considera Lívia Franco. A professora e investigadora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa recorda que “Portugal, enquanto ator externo, vê-se a si próprio como sendo um ator multilateral” no panorama internacional. Foi, aliás, essa característica que ajudou o país a conseguir vencer “a candidatura do engenheiro Guterres a secretário-geral da ONU”, sublinha. Mas isso não significa, alerta, ser neutro, mas antes ser capaz de manter relações com os diferentes blocos geopolíticos, ainda que possa existir maior proximidade a um deles – o norte-americano, neste caso.
PARA ONDE CAMINHAMOS
Lívia Franco, que se dedica ao estudo das nuances das relações internacionais, assinala que Portugal terá, eventualmente, de fazer uma escolha entre o bloco norte-americano e o bloco chinês. “Uma das perguntas [em inquérito] que se fez aos portugueses era sobre o que Portugal devia fazer caso se viesse a intensificar um conflito entre os Estados Unidos e a China. Cerca de 70% dos portugueses disseram que o país se devia manter-se neutro”.
No entanto, “a neutralidade não é possível” sendo Portugal um país aliado da NATO e membro da UE – e “nem sequer é uma coisa boa”. Por outro lado, alerta, o previsível alargamento do projeto europeu à Ucrânia e aos países dos Balcãs colocará Portugal numa posição em que, necessariamente, terá de tomar uma posição até porque o eixo Atlântico é, para os portugueses, fundamental.
Mas há ainda uma outra questão a considerar, como alerta Henrique Burnay: o futuro político dos Estados Unidos. O protecionismo económico iniciado por Trump foi prolongado por Biden, nomeadamente por via do Inflation Reduction Act, e “isso tem um custo para a Europa”. “Em suma, a Europa está mais preocupada com a China do que estava, mas está menos certa de que o seu posicionamento tenha de ser o dos Estados Unidos”, remata o especialista, que sublinha a importância de os europeus – e os portugueses – repensarem a sua estratégia geopolítica sob pena de serem apanhados no conflito entre dois blocos, com eventuais consequências económicas para a UE.