5 Décadas de Democracia

As torneiras estão a secar. Está Portugal preparado para viver com menos água?

O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Até março, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 tópicos diferentes da sociedade à economia. Em fevereiro, abordamos os desafios que as mudanças do clima representam para a população em Portugal

As barragens do Algarve estão com os volumes de água a 25%, obrigando a planos de contingência para o ano inteiro
LUÍS FORRA/LUSA

OS FACTOS

184 litros é o consumo médio diário de água por habitante em Portugal, segundo dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR). Ao longo das últimas cinco décadas, a rede pública de abastecimento foi alargando o seu alcance – hoje chega a 97% dos alojamentos no país – e melhorando a qualidade da água distribuída. De acordo com a mesma fonte, 98,96% da água de torneira é “controlada e de boa qualidade”.

Porém, a facilidade no acesso à água pode não ser um dado adquirido. Com os efeitos das alterações climáticas, o território português está a percorrer uma trajetória de aquecimento e de redução da precipitação, dois fatores que, combinados, resultam em períodos de seca mais frequentes e de maior duração.

“Em Portugal, todas as projeções apontam para perdas de precipitação substanciais, principalmente no Sul”, confirma Pedro Matos Soares, investigador do Instituto Dom Luiz dedicado às alterações climáticas. No pior cenário, o país pode ver reduzida a precipitação em 30% a 40% até ao final deste século, valor que desce para 20% numa previsão intermédia.

40%

é a redução estimada da percipitação que, segundo os peritos, deverá ocorrer até ao final do século. No cenário intermédio, o país perde um quinto da água até 2100.

Segundo os especialistas, a água disponível na região do Algarve reduziu-se em cerca de 15% nos últimos 20 anos, uma realidade que ajuda a explicar a recente crise verificada nas barragens locais. Em declarações recentes ao Expresso, o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), António Pina, confirmou que uma das soluções encontradas para combater a escassez é “o aumento do tarifário” que vai “incidir sobre todos [os consumidores] menos os que estão no primeiro escalão”. A subida das faturas irá oscilar entre os 15% e os 50%, consoante o consumo de água por família.

À data de fecho deste artigo, os dados disponibilizados pelo Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) referentes a janeiro indicam que o armazenamento de água na bacia Ribeiras do Algarve registava apenas 9,4% de água disponível. Este valor, no entanto, é mais alto do que o registado nos meses de agosto a dezembro, em que o armazenamento variou entre um mínimo de 7,6% e um máximo de 8,5%.

COMO CHEGÁMOS AQUI

Escassez de água não é necessariamente sinónimo de seca, avisa o especialista Joaquim Poças Martins. O professor na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto explica que a água pode faltar nas torneiras por má gestão e dificuldade de adaptação. Por exemplo, cerca de 30% de toda a água captada em Portugal é perdida na distribuição – seja por falta de manutenção, seja água não faturada. “Dois terços são perdas reais e um terço são perdas de faturação”, detalha.

Segundo dados da ERSAR relativos a 2021, cerca de 45 municípios registam perdas acima dos 50% e existem 19 que nem sequer fazem a medição. No total, em 2021 foram desperdiçados, desta forma, o equivalente a 237 milhões de litros de água em todo o país. A má notícia? Este valor mantém-se constante há mais de dez anos.

No entanto, o país tem procurado, ao longo das últimas cinco décadas, apostar em soluções de captação e armazenamento para fazer face à escassez de água em algumas zonas do território nacional. O Alentejo é disso exemplo, com a inauguração do projeto do Alqueva, em 2004, e que tem permitido, nas últimas duas décadas, fazer crescer a atividade agrícola na região.

A agricultura deve ser um dos sectores prioritários do ponto de vista da gestão da água, considera Pedro Matos Soares. O investigador do Instituto Dom Luiz, da Universidade de Lisboa, lembra que que é preciso “ver qual é a adequação de certas culturas ao nosso clima e às disponibilidades hídricas que temos”, referindo-se em particular à plantação de abacate, que exige um elevado consumo de água para a sua produção. “Estamos a fazer milhares de hectares de abacate em zonas que estão com problemas de seca. Isto tem algum sentido?”, questiona.

“Os sistemas de abastecimento públicos têm perdas totais de, em média, 30%. Desses, dois terços são perdas reais e um terço são perdas de faturação. Portanto, 20% da água captada em Portugal não chega a casa das pessoas por ineficiência dos serviços”, afirma Joaquim Poças Martins

Joaquim Poças Martins concorda que é preciso rever a política agrícola no Sul do país e perceber quais são as culturas em que se deve apostar, partindo de um racional entre o proveito económico e a utilização de recursos naturais. “A laranja do Algarve está a ser vendida a 20 cêntimos o quilo. Neste momento, o agricultor no Algarve paga praticamente zero pela água e, através do transporte de água do Norte para o Sul, passaria a pagar 30 cêntimos por metro cúbico. A laranja seria incomportável”, exemplifica.

“Temos de pensar, do ponto de vista do desenvolvimento económico, se queremos uma agricultura que seja de exportação de amêndoas e de abacates e se isso, do ponto de vista económico, está integrado e interessa ao país”, sugere Matos Soares.

Questionado sobre o impacto do consumo pelos campos de golf na região, Poças Martins recusa a ideia de que são estes espaços os principais culpados pela falta de água e aponta que, em comparação com a produção de laranja, os proveitos económicos com esta atividade são superiores aos da agricultura. “Os campos de golf regam-se com água reutilizada e podem fazer-se os campos de golf todos do mundo. Só tenho pena que não haja em Portugal mais campos de golf a render €5 milhões por ano”, afirma.

PARA ONDE CAMINHAMOS

Já vimos as más notícias, é agora tempo de chegar às boas notícias. “As boas notícias são que temos água que chegue se a gerirmos bem”, assegura Poças Martins. O especialista usa o Algarve como exemplo para o que pode ser replicado em outras zonas do país com pouca água: dos 75 milhões de metros cúbicos que as Águas do Algarve vendem aos municípios, 40 milhões “são transformados em esgoto e passam nas estações de tratamento”. É o equivalente a “oito mil hectares de regadio que estão a ser literalmente desperdiçados no mar” só naquela região.

A solução passa, defende, por uma aposta forte na reutilização da água para outras atividades, como a rega ou limpeza das ruas, e por um investimento sério na manutenção da rede para reduzir as perdas o mais possível. A isto deve juntar-se, sempre que necessário, a dessalinização da água do mar – neste caso, sublinha, a água deve ser usada para consumo nos hotéis e outros espaços com capacidade financeira para pagar os 50 cêntimos por metro cúbico de água dessalinizada. “As piscinas podem ser cheias com água do mar”, reforça.

A dessalinização não é uma novidade em Portugal, Porto Santo já o faz desde 1980 para garantir o abastecimento de água potável em toda a ilha que vive, sobretudo, do turismo – esta foi a primeira central do género na Europa e a quinta em todo o mundo. Esta instalação tem capacidade para produzir até 6.500 metros cúbicos por dia, limite que só é atingido no verão, e o custo do metro cúbico ronda os 79 cêntimos.

A par com uma gestão mais eficiente do recurso, Pedro Matos Soares diz ser preciso maior “valorização da água”. “Em termos sociais, temos também que aprender a valorizar a água, porque só assim é que as pessoas podem ser exigentes na utilização”, aponta o perito.