5 Décadas de Democracia

Contrariar a abstenção pode passar por novas formas de exercer o voto?

O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Até março, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 tópicos diferentes da sociedade à economia. Em dezembro, o foco da análise é a participação política e as suas múltiplas dimensões

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

OS FACTOS

A abstenção tem sido um dos principais desafios que a ainda jovem democracia portuguesa, como outras, enfrenta nos diferentes tipos de atos eleitorais. Tradicionalmente, são as votações para o Parlamento Europeu que registam níveis de participação mais baixos – em 2019, segundo dados oficiais, foram às urnas apenas 30,7% dos eleitores portugueses. Nas eleições europeias anteriores, em 2014, a abstenção ficou em 66,2%.

A realidade, embora com números ligeiramente mais baixos, é semelhante nas votações para a Presidência da República, para a Assembleia da República e para as autarquias.

Nas últimas eleições legislativas, em janeiro de 2022, foram implementadas medidas para garantir o direito de voto a todos os cidadãos que estivessem sujeitos a confinamento obrigatório em consequência da doença covid-19. Foi criado um horário especial, no dia das eleições, para que estas pessoas pudessem votar presencialmente, mas foi também criado um mecanismo, em articulação com as autarquias, para permitir o voto em domicílio.

Para isso, os eleitores teriam de manifestar intenção de votar desta forma – através de inscrição eletrónica ou na Junta de Freguesia da residência – e, nos dias definidos para a recolha do boletim, o voto seria recebido por um representante do município.

285.000

foi o número de eleitores que se inscreveram para voto antecipado nas eleições legislativas de 2022, um número superior aos 246 mil registados nas presidenciais de 2021

Já em 2021, na altura de decidir o novo presidente da República, o método tinha sido usado, ainda que com fraca adesão: apenas 12.906 eleitores se inscreveram, numa altura em que se registavam mais de 130 mil casos de infeção por covid-19.

Em ambas as eleições foi também possível optar pelo voto antecipado, que oferecia a possibilidade de cumprir o direito constitucional, uma semana antes da votação, em qualquer sede de concelho do país – mesmo que fora da zona de residência.

COMO CHEGÁMOS AQUI

As últimas eleições legislativas registaram, porém, problemas no voto dos emigrantes portugueses. O Tribunal Constitucional decidiu, por unanimidade, que fossem repetidas as votações do círculo eleitoral da Europa por terem sido invalidados mais de 80% dos boletins recebidos – em causa estava a falta de uma cópia do cartão de cidadão, que deveria acompanhar o boletim. As irregularidades atingiram quase 160 mil pessoas, que tiveram, no entanto, uma segunda oportunidade de participar.

Vários estudos apontam que a abstenção pode ser reduzida por via da simplificação do ato eleitoral, em particular através da oferta de mais opções de voto. “Sabemos que aumentar a conveniência do voto tende a funcionar. Noutros países onde isto foi devidamente estudado, assistimos a um aumento – não muito alto – da taxa de participação”, reconhece João Cancela. O professor de Ciência Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa diz, contudo, que “é difícil termos uma noção de quais são os efeitos dessas medidas” em Portugal por ainda não existirem estudos sobre isso.

“O facto de vermos grandes filas de pessoas para votar antecipadamente não quer dizer, necessariamente, que sejam pessoas que não iriam votar na semana seguinte”, diz João Cancela

O também investigador refere-se, por exemplo, à possibilidade do voto antecipado, uma modalidade que teve bastante adesão nas presidenciais de 2021 – mais de 246 mil inscritos – e nas legislativas de 2022 – com mais de 285 mil eleitores. Ainda assim, alerta para as conclusões que daí se tiram sem estudos científicos. “O facto de vermos grandes filas de pessoas para votar antecipadamente não quer dizer, necessariamente, que sejam pessoas que não iriam votar na semana seguinte”, diz. Por outro lado, João Cancela fala ainda num “dilema” deste tipo de mecanismo, já que significa que nem todos os cidadãos votam com o mesmo nível de informação sobre as campanhas políticas – se votam uma semana antes do final da campanha, podem, eventualmente, não ter a mesma informação que os restantes eleitores.

Isabel Menezes, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, olha para todas as medidas de facilitação do processo eleitoral como positivas. “Uma coisa que me parece óbvia é que se conseguirmos diminuir as barreiras, sabemos que isso vai mudar muito a disponibilidade das pessoas. Se for muito complicado lá chegar, isso diminui o potencial de concretizar o comportamento”, considera.

Ainda assim, a especialista em participação política acredita que a melhor forma de reduzir os níveis de abstenção é “pôr os partidos a prestar mais contas quotidianamente”, em especial “explicar às pessoas porque é que certas decisões foram tomadas, porque é que certas promessas foram feitas e não estão a ser cumpridas”. “As pessoas elegem deputados que nunca mais veem”, assinala.

PARA ONDE CAMINHAMOS

Mais recentemente, no final de novembro, o parlamento aprovou em especialidade uma proposta do PSD para permitir que nas próximas eleições europeias – em junho de 2024 – seja possível votar em mobilidade sem inscrição prévia. A ideia é que os eleitores possam exercer o seu direito em “qualquer mesa de voto constituída em território nacional ou no estrangeiro”, algo que será possível pela existência de cadernos eleitorais digitais. Está ainda previsto que a Comissão Nacional de Eleições elabore, no prazo de três meses após a votação, um relatório sobre a aplicação desta modalidade.

“No que diz respeito ao voto, há uma vasta investigação que sugere propostas para facilitar aquilo a que se chama o “voto de conveniência”. Deste ponto de vista, tudo o que ajude a diminuir o “custo” do voto poderá ser favorável”, considera o investigador Pedro Magalhães

Pedro Magalhães, doutorado em Ciência Política e investigador coordenador do ICS-ULisboa, assinala que “há uma vasta investigação que sugere propostas para facilitar aquilo a que se chama voto de conveniência” e que, deste ponto de vista, “tudo o que ajude a diminuir o “custo” do voto poderá ser favorável”. O voto em mobilidade ou por correspondência são disso exemplos.

“Apesar de alguma controvérsia sobre os efeitos do voto antecipado na abstenção, o seu alargamento para além da incipiente experiência portuguesa, especialmente se ligado à criação de assembleias de voto especiais em zonas onde circulem populações-alvo (universidades, centros comerciais, centros das cidades), é prometedor para a redução de algumas das assimetrias participativas”, reforça o perito.

O professor João Cancela lembra ainda que, de tempos a tempos, é recuperada a ideia de “voto eletrónico à distância” em que se poderia “usar a chave móvel digital para votar”, uma ferramenta que já é usada para permitir, por exemplo, autenticação de identidade em pagamentos bancários. Porém, o especialista mostra reticências na sua aplicação à participação eleitoral. “Num caso de fraude de identidade numa transferência monetária, o dinheiro é restituível. No caso do voto, a coisa não se passa assim”, explica.