5 Décadas de Democracia

Como é que a pobreza está distribuída pelo país?

O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Nos próximos meses, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 tópicos diferentes da sociedade à economia. Em novembro, o foco da análise é a pobreza e as suas múltiplas dimensões

Hugo Moreira

OS FACTOS

Portugal é um país desigual no que à distribuição de rendimentos diz respeito. Os dados são claros: em 2022, a taxa de privação material e social mais alta registava-se na região autónoma dos Açores (19,9%), enquanto a mais baixa pertencia ao Alentejo (8%). A informação do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostra claramente uma disparidade entre o território continental e as ilhas, que ocupam os dois primeiros lugares da tabela com 18,5% (Madeira) e 19,9% (Açores).

Em Portugal continental, é a região Norte (13%) que lidera com a maior taxa de privação material e social, seguida do Algarve (12,9%) e da Área Metropolitana de Lisboa (11,8%).

A tendência mantém-se quando olhamos para o indicador Europa 2030 sobre o risco de pobreza e exclusão social por região, embora com algumas alterações. As regiões autónomas continuam a destacar-se com os valores mais elevados (30,3% nos Açores e 30,2% na Madeira), enquanto no continente é agora o Algarve que ocupa a primeira posição (25,7%), depois a região Norte (23,9%), região Centro (18,7%), o Alentejo (18,1%) e, por fim, a área metropolitana de Lisboa (14,5%).

O estudo anual “Relatório Social 2022”, produzido por uma equipa de investigadores da Nova SBE, revela que, em 2020, os 25% mais ricos detinham 47% de toda a riqueza nacional, enquanto os 25% mais pobres tinham apenas 10,1%. Dizem os autores que os números têm vindo a evoluir negativamente nos últimos anos, mas são melhores do que aqueles registados em 2007.

O documento estabelece ainda uma relação entre o nível de formação académica e os rendimentos. Cerca de 47% dos 25% mais ricos tinham frequentado o ensino superior, um valor que desce consideravelmente quando se atenta aos 25% mais pobres, em que apenas 9,3% tinha passado por esse nível académico.

COMO CHEGÁMOS AQUI

Mais do que a taxa efectiva de pobreza (que, em 2022, se fixou nos 16,4% a nível nacional), o problema de Portugal prende-se com o facto de ser “uma sociedade ioiô” em que a pobreza “ora sobe, ora desce” à boleia dos períodos de crise. Quem o diz é Joaquina Madeira, da Rede Europeia Anti-Pobreza, que assinala que são os grupos “mais vulneráveis” quem mais sofre com estas subidas e descidas - mais um fator que contribui para a chamada pobreza intergeracional, ou seja, a pobreza que é transmitida de geração em geração. “Sabemos que a privação é um problema que afeta a saúde física e a saúde mental. É um problema de recursos, de acesso a bens e serviços, de oportunidade, mas também um problema pessoal que afeta a capacidade para ter um trabalho digno”, sublinha a especialista.

As disparidades regionais existem, como já vimos, e Carlos Farinha Rodrigues lembra que a pobreza ainda é um fenómeno mais ligado ao interior. “Apesar de nos últimos anos a proporção da população rural pobre ter diminuído, em grande parte associada à desertificação do interior, é ainda nas zonas rurais que a incidência da pobreza assume valores mais elevados”, explica. O investigador e professor do ISEG cita dados de 2020 que demonstram que a taxa de pobreza nas áreas rurais “ascendia a 26,2%, enquanto nas grandes áreas metropolitanas era de 15,6%”.

É também nas maiores cidades que se assiste, nos últimos dois anos, a um aumento expressivo da pobreza, em grande medida associado à subida do custo de vida e à crise na habitação. Aliás, os números oficiais evidenciam que, nos últimos quatro anos, o número de pessoas em situação de sem-abrigo aumentou 78% para um total de 10.773.

Sobre as diferenças verificadas nas várias zonas do país, Carlos Farinha Rodrigues considera que “esta fortíssima disparidade dos níveis de pobreza espelha não somente realidades muito diferentes quanto às condições de vida”, como “constitui igualmente um fator de enfraquecimento da coesão nacional”. As autarquias assumem aqui um papel central no combate à pobreza, mas Joaquina Madeira lembra que “nem todos os municípios têm os mesmos recursos” e isso dificulta, também, uma ação mais eficaz.

Um dos entraves à transformação estrutural é a forma como a sociedade olha para a pobreza, alerta a perita, que diz existir “uma estigmatizaçāo do pobre e não do fenómeno”. Porém, Joaquina Madeira fala no “grande passo” dado no pós 25 de abril com a identificação da “pobreza como um problema social”. “Isto é, que exige políticas públicas, que exige o envolvimento da sociedade, sabendo que se a pobreza é da sociedade e não dos pobres, a própria pobreza é da sociedade. A própria sociedade sofre, é prejudicada por haver pobres”, afirma

26,2%

era a percentagem da taxa de pobreza nas zonas rurais, em 2020. O número contrasta com 15,6% nas grandes áreas metropolitanas

“A coexistência destes diferentes tipos de pobreza implica políticas públicas diferenciadas, que tenham em conta a especificidade de cada território na medida em que, por exemplo, algumas medidas adequadas para as áreas urbanas podem ser ineficazes ou mesmo contraproducentes em zonas mais ruralizadas“, afirma Carlos Farinha Rodrigues

PARA ONDE CAMINHAMOS

A distribuição desigual da pobreza é um desafio diretamente associado aos fatores estruturais e conjunturais de cada região, e é por isso que os especialistas olham para o papel das políticas públicas locais como essencial. “É importante reforçar a participação das autarquias nas respostas dirigidas a populações vulneráveis, nomeadamente promovendo a proximidade e o acesso a medidas de apoio social nos municípios”, considera Carlos Farinha Rodrigues.

A opinião colhe concordância junto de Joaquina Madeira, que não tem dúvidas de que são as instituições locais quem tem um maior conhecimento dos problemas que as suas populações enfrentam.

Por outro lado, sugere, é preciso incluir os mais vulneráveis nas decisões. “São estas pessoas as mais competentes para falar sobre o problema. A Rede Europeia Anti-Pobreza faz fóruns para dar voz estas pessoas”, exemplifica.

Mas além do papel do poder público local e do envolvimento da população, é ainda necessário criar uma rede de instituições sem fins lucrativos que possam organizar-se e, com isso, rentabilizar os parcos recursos de que dispõem. “Temos de ser capazes de trabalhar uns com os outros, não podemos trabalhar em silos”, reforça.

Ao Estado central, consideram os peritos, compete garantir que existe coesão territorial ao nível do acesso a serviços públicos, como seja a saúde ou a educação, de forma a assegurar que todos têm as mesmas ferramentas para continuar a combater o flagelo da pobreza em Portugal - no país, mas sobretudo em cada rua, cada cidade e cada distrito.