5 Décadas de Democracia

Ter emprego é suficiente para evitar a pobreza?

O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Nos próximos meses, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 tópicos diferentes da sociedade à economia. Em novembro, o foco da análise é a pobreza e as suas múltiplas dimensões

marcos borga

OS FACTOS

O desemprego continua a ser um dos principais fatores associados à pobreza, como confirmam os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento 2022 (ICOR 2022). De acordo com o estudo, a incidência de pobreza entre a população que não tem emprego é de 43,4%, menos 3,1 pontos percentuais do que o registado no ano da chegada da pandemia, em 2020.

Na tabela, segue-se o grupo de outros inativos no mercado de trabalho (27,8%) e dos reformados (14,9%). No fim da lista, surgem as pessoas que estão empregadas, mas que, ainda assim, registam uma incidência de pobreza de 10,3%.

Ao longo dos últimos dez anos, o salário mínimo nacional (SMN) aumentou de forma substancial. Os dados agregados pela Pordata mostram que o vencimento mínimo mensal correspondia, em 2013, a €485, valor que aumentou para €505 em 2015 e para €530 no ano seguinte. A trajetória foi de aumento constante e anual, com o SMN a atingir €705 em 2022.

€19.300

é o valor do salário bruto médio registado em Portugal em 2021, de acordo com dados do Eurostat. O organismo mostra que a remuneração média portuguesa corresponde a apenas 58% da média europeia (€33.500) e a 68% do que é pago em Espanha (€28.180)

O maior crescimento verificou-se já este ano, quando as empresas e o Estado passaram a pagar um mínimo de €760 aos trabalhadores. Apesar da demissão do primeiro-ministro, António Costa, e da dissolução da Assembleia da República marcada para 15 de janeiro de 2024, o aumento do SMN para o próximo ano está garantido e vai atingir €820 – passará a ser, desde 2013, a maior subida dos últimos dez anos.

Em 2022, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), 79,1% das pessoas em idade ativa (entre 15 e 64 anos) estava empregada ou desempregada, mas disponível para o mercado de trabalho. Esta é a percentagem mais elevada desde que há registo. No mesmo ano, a população entre os 16 e os 89 anos que trabalhava correspondia a 56,5% do total, um valor apenas superado em 2008, quando se registava 57,4%.

COMO CHEGÁMOS AQUI

Carlos Farinha Rodrigues, professor no ISEG e especialista em desigualdades, não tem dúvidas de que ter emprego não é sinónimo de viver acima do limiar da pobreza. “Os baixos salários, a desigualdade salarial e a generalização do trabalho precário desempenham um papel fundamental na manutenção das condições de pobreza”, aponta. O especialista lembra que, em 2020, 521 mil trabalhadores encontravam-se em situação de carência económica e que “os trabalhadores pobres representavam 34% do total da população pobre com 18 ou mais anos”.

A opinião é partilhada pelo professor e investigador Fernando Diogo, que garante que ter emprego “nunca foi” uma garantia de fugir à pobreza, algo que, aliás, ficou patente no estudo “A pobreza em Portugal: trajetos e quotidianos” que coordenou em 2021. “Os dados que apresentámos contrariam um pouco aquele discurso de que os pobres são os malandros que não querem trabalhar”, sublinha o especialista da Universidade dos Açores. O problema está, diz, nos baixos salários, um fator que agrava a probabilidade de se viver na pobreza se o trabalhador estiver integrado num agregado familiar com filhos. E os dados comprovam-no: segundo o ICOR 2022, a taxa de pobreza em famílias sem filhos era, em 2021, de 14,8%, mas a percentagem aumentava significativamente nas famílias com crianças (18%).

“Medidas como o aumento do salário mínimo têm tido um papel importante para reduzir a incidência da pobreza que afeta os trabalhadores, mas são claramente insuficientes”, considera Carlos Farinha Rodrigues

Nos últimos anos, fatores conjunturais como o aumento do custo da habitação e, especialmente depois do início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a inflação têm sido prejudiciais para a generalidade da população. Outro dos desafios apontados pelos peritos prende-se com a aproximação do ordenado mínimo nacional com o salário médio, que em 2021 era de €19.300 brutos anuais – 58% do salário médio auferido na União Europeia.

PARA ONDE CAMINHAMOS

Fernando Diogo assegura que “há margem” para subir os rendimentos dos trabalhadores em Portugal, algo que considera essencial num país que, no contexto europeu, “tem uma alta taxa de desigualdade de distribuição de rendimento”. Mas o investigador diz-se preocupado com uma transformação que está a ocorrer no mercado de trabalho. “Está a ser feita uma coisa que me deixa muito preocupado, que é substituir os portugueses que estão a emigrar porque não têm em Portugal os ordenados que querem. As tarefas que os portugueses recusam fazer porque são muito mal pagas estão a ser feitas por imigrantes desqualificados que vêm ser explorados em Portugal”, lamenta.

Farinha Rodrigues acredita que “é necessário priorizar a capacitação dos jovens”, por um lado, e regular o mercado, por outro. Aliás, um relatório da Pordata, divulgado a propósito da Jornada Mundial da Juventude, indica que 95% dos jovens entre os 15 e os 24 ainda vive com os pais e que 60% tem vínculos de trabalho precários.

“A estabilidade produtiva da economia portuguesa e a melhoria de salários terá, com certeza, um impacto muito grande na redução da pobreza”, afirma Fernando Diogo

“A efetiva implementação do Compromisso Emprego Sustentável preconizada no Plano de Recuperação e Resiliência, com o objetivo de apoiar à criação de emprego sem termo com uma diferenciação positiva para a contratação de jovens e para a fixação de níveis salariais adequados, pode constituir um contributo importante para a redução da pobreza e em particular para a redução dos trabalhadores pobres”, afirma o especialista.

O professor da Universidade dos Açores diz ainda que é preciso debater a “especialização produtiva da economia portuguesa”, que está assente “em alguns sectores que pagam mal”. O turismo é, aponta, um desses sectores, que apesar do contributo para o PIB nacional continua a “pagar mal”. “A estabilidade produtiva da economia portuguesa e a melhoria de salários terá, com certeza, um impacto muito grande na redução da pobreza”, afiança.