Expressinho

Viver para salvar

José Ribeiro tem 37 anos e veste a farda de bombeiro há 20. Para esta missão, contou ao Expressinho que é preciso ter "coragem, espírito de sacrifício, disciplina e entrega total"

Há quanto tempo é bombeiro?

Há 20 anos que visto esta farda. Entrei nos Bombeiros Voluntários de Carcavelos ainda em miúdo, cheio de sonhos e sem imaginar tudo o que iria viver. Ali cresci e aprendi o que significa verdadeiramente ser bombeiro. Hoje estou nos Bombeiros de Cabo Ruivo, nos Olivais. Não sei se fui eu que escolhi esta vida ou se foi ela que me escolheu a mim… mas sei que, desde o primeiro dia, nunca mais consegui viver sem ela.

Por que tomou esta decisão?

A vontade nasceu cedo. Lembro-me de ter 6 ou 7 anos e ver os bombeiros da Parede a entrarem num prédio em chamas, todos firmes, tenazes e destemidos. Aquela imagem nunca mais me saiu da cabeça. Foi nesse momento que pensei: “Quero ser como eles. Quero estar lá quando tudo arde e todos fogem.” Anos mais tarde, fui desafiado por alguns colegas de escola secundária. Esse empurrão foi decisivo para dar o passo em frente.

"Sempre tive dentro de mim esta necessidade de servir, de estar presente quando tudo e todos falham."

Como se sentiu no primeiro fogo que combateu?

Lembro-me como se fosse ontem do meu primeiro incêndio. Fui pela mão do então Subchefe Pedro Nery - que hoje é Chefe e está comigo em Cabo Ruivo - a um fogo numa habitação na Estrada da Torre, em Carcavelos. Foi a primeira vez que entrei para a “ponta da espada”, aquela posição da linha de água onde tudo se sente de forma mais crua. Nesse dia, senti medo, adrenalina e orgulho. Mas acima de tudo aprendi uma lição que nunca esqueci: ser bombeiro não é só enfrentar as chamas, é respeitá-las, compreendê-las e nunca as subestimar.

Quando é dado o alerta de incêndio no quartel, quais sãos os procedimentos?

O procedimento é imediato. Os bombeiros fardam-se rapidamente, enquanto o Chefe de Equipa se dirige à Central de Comunicações para receber a informação detalhada da ocorrência. Com base nesse enquadramento, a equipa adapta os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados à situação em causa, seja um incêndio urbano ou rural, um acidente de viação, um resgate marítimo ou outro tipo de intervenção.

O que é mais importante no trabalho em equipa, quando estão no meio das chamas?

A confiança. Confiança absoluta de que o colega ao nosso lado nunca nos vai deixar para trás e de que nós nunca o deixaremos a ele. No terreno, cada um tem a sua função, mas tudo se resume ao coletivo. Não há espaço para egos nem para individualismos. Só existe o “nós”. É essa confiança mútua que nos mantém firmes, organizados e vivos em cenários onde um erro pode custar tudo.

Na sua opinião, o que falhou no terreno este verão?

Sobretudo a prevenção e a coordenação dos meios. Continuamos a ter matas mal geridas, falta de faixas de contenção, ausência de pontos de água devidamente preparados e acessíveis. No terreno, sentimos também a demora na chegada de reforços e a dificuldade em articular diferentes entidades - bombeiros, proteção civil, autarquias e até forças de segurança.

Porque é que, anos após ano, o cenário se repete?

A prevenção continua a ser tratada como algo secundário, quando devia ser a base de tudo. Criam-se planos e fazem-se promessas, mas na prática, quando chega o calor e o vento, o país volta a arder. Falta também memória coletiva: passadas as tragédias, a sociedade e os decisores políticos parecem esquecer-se da dor vivida e voltamos ao mesmo ciclo. É por isso que cada verão parece uma repetição do anterior porque a lição nunca é totalmente aprendida. Por isso que existe o ditado “Os incêndios começam a ser combatidos no inverno”.

Quando o fogo leva “paredes e memórias” o que fica?

Fica um vazio difícil de explicar. Fica a dor de ver uma vida inteira reduzida a cinzas em poucas horas. Mas também fica algo que o fogo nunca consegue destruir: a solidariedade. Já vi vizinhos que perderam tudo darem de imediato a mão a outros que também perderam. Já vi pessoas a partilharem o pouco que lhes restava. É essa união, esse lado humano que sobrevive às chamas, que nos dá força para continuar e acreditar que é possível recomeçar.

Como lida com todas essas memórias que vai “colecionando”?

Essas memórias ficam guardadas cá dentro, como cicatrizes invisíveis. Muitas vezes não se veem, mas pesam. Há sons, cheiros e imagens que nunca mais nos largam. Não há como apagar estas marcas. Carregamo-las sempre connosco. O que procuro é transformá-las em força e em motivação para continuar a vestir a farda. Cada memória dura recorda-me porque escolhi esta missão e porque continuo a cumpri-la: salvar alguém vale sempre mais.

Além de coragem, o que é necessário para ser bombeiro?

Coragem abre a porta, mas é a dedicação, a preparação e o coração que mantêm um bombeiro de pé. Ser bombeiro exige resiliência, disciplina e entrega total. É preciso ter sangue-frio para decidir em segundos, humildade para reconhecer os limites e, acima de tudo, espírito de sacrifício.

Que outras funções desempenha um bombeiro além do combate aos fogos?

Ser bombeiro vai muito além do combate aos incêndios. Estamos presentes em múltiplas frentes: socorremos vítimas em acidentes de viação, prestamos assistência em situações de doença súbita, participamos em operações de resgate marítimo e em altura, ajudamos em inundações e fenómenos naturais, fazemos transporte de doentes e até missões de apoio às populações em catástrofes.

O que faz no dia a dia?

Sou Business Analyst na DXC Technology, um mundo completamente diferente, feito de sistemas, processos e tecnologia. Mas quando entro no quartel, deixo esse lado de José Carlos para trás. Ali não sou analista nem consultor: sou apenas mais um entre irmãos de farda, pronto para entrar no fogo.

Onde guarda os seus medos?

Os medos guardo-os em silêncio. No terreno não há espaço para hesitações se nos deixarmos levar pelo medo, não conseguimos agir. Ali ele transforma-se em cautela e respeito pelo fogo. É quando chegamos a casa, no conforto, que caímos na realidade do verdadeiro perigo que passámos. É aí, no silêncio, que nos apercebemos de quem poderíamos ter deixado lá. Esses pensamentos pesam mais do que qualquer chama.

Se conseguisse resumir a sua missão numa palavra, qual seria?

VIDA - É por ela que arriscamos a nossa, é por ela que enfrentamos as chamas, é por ela que deixamos tudo para trás quando soa o alerta. A vida é aquilo que defendemos, aquilo que carregamos e aquilo que nunca deixaremos de proteger.


AGORA TU...

Sabes o que fazer em caso de incêndio? O bombeiro José Ribeiro recomenda:

No exterior

- Afasta-te pela direção contrária ao vento e procura zonas seguras (estradas, terrenos agrícolas, linhas de água).

- Nunca fujas monte acima – o fogo sobe mais rápido que tu.

- Evita zonas com muito mato ou pinheiros/eucaliptos – são combustíveis rápidos.

Em casa

- Fecha portas, janelas e persianas.

- Desliga gás e eletricidade.

- Tenha água disponível (baldes, mangueiras).

- Segue sempre as orientações das autoridades – não voltes para trás por conta própria.