O Estado terminou o primeiro trimestre de 2024 com um défice de 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB), anunciou esta segunda-feira, 24 de junho, o Instituto Nacional de Estatística (INE). No mesmo período há um ano tinha-se registado um excedente de 1,1%. Em termos absolutos, o Estado foi deficitário em 118,9 milhões de euros entre janeiro e março, isto é, praticamente em equilíbrio orçamental.
Estes números, em contabilidade nacional, diferem dos números avançados pela Direção-Geral do Orçamento (DGO), que, por se basearem em contabilidade pública, reportaram um défice mais substancial no arranque do ano, de 259 milhões de euros até março - números que muita polémica deram com o Ministério das Finanças do novo Governo a declarar-se surpreendido com o que descreveu como sendo uma “forte degradação” das contas públicas.
A discrepância entre os dois números deve-se simplesmente a duas formas diferentes de tirar o “retrato” das contas do Estado. Trata-se de duas abordagens diferentes no cálculo do deve-e-haver das Administrações Públicas: a DGO apresenta as contas em ótica de caixa, isto é, só contabiliza a despesa e a receita quando os fundos entram ou saem efetivamente dos cofres do Tesouro. O INE, por sua vez, faz o balanço de maneira diferente, contabilizando a despesa logo no momento em que o Estado se compromete com ela, mesmo que os fundos que irão pagar esses encargos se mantenham ainda na conta pública.
Apoios na eletricidade fazem disparar despesa com subsídios
A receita aumentou, no primeiro trimestre, a um ritmo menor do que o da despesa: face ao período homólogo, a receita cresceu 7,3%, ao passo que a despesa incrementou 11%.
O INE aponta que o aumento da despesa corrente - os gastos com que o Estado incorreu no período em questão, como salários - foi de 11,1% “em resultado do aumento dos encargos com prestações sociais (11,6%), das despesas com pessoal (9,6%), dos encargos com juros (9,7%), do consumo intermédio (4,1%), dos subsídios (103,4%) e da outra despesa corrente (6,7%)”.
O crescimento do montante pago em subsídios, que, ao subir 103,4%, mais do que duplicou face ao primeiro trimestre do ano passado, deveu-se “essencialmente [à] alocação adicional de verbas ao Sistema Elétrico Nacional (SEN) para redução das tarifas de eletricidade”.
A despesa corrente primária, que exclui os encargos com juros pagos pelo Estado, cresceu 11,2%, ao passo que a despesa de capital - a despesa pública efetuada para criação de bens e serviços que servirão para atividade produtiva - subiu 9,8% “em resultado do crescimento de 6,4% do investimento e de 19,7% da outra despesa de capital”
Do lado da receita, todas as componentes desta categoria registaram subidas: “os impostos sobre o rendimento e património, sobre a produção e importação, as contribuições sociais, as vendas e a outra receita corrente cresceram 6,4%, 6,1%, 9,7%, 3,5% e 6%, respetivamente”.
Fundos comunitários como os do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) foram responsáveis, por seu lado, pela subida de 30,4% na receita de capital, o agregado que contabiliza os fundos recebidos pelo Estado destinados a financiar investimento.
Mais achas para a fogueira orçamental
Os números do INE deverão ser o novo argumento político num combate que ainda não terminou. A troca de tiros começou com a tomada de posse do novo Governo. O novo ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, arrancou o seu mandato no Terreiro do Paço com ataques à anterior gestão das finanças públicas, acusando o seu antecessor, Fernando Medina, e a sua equipa de centenas de milhões de euros em despesas não cabimentadas (criticando, mais concretamente, a aprovação de compromissos na ordem dos 1,2 mil milhões de euros, quando o anterior governo já estava em gestão), e do uso antecipado dos “fundos de maneio” das Finanças. Uma “forte degradação” das contas públicas, disse o ministro das Finanças; uma situação “preocupante”, nas palavras do ministro da Presidência, António Leitão Amaro.
Medina defendeu-se: “Portugal não tem um problema de natureza orçamental e encaminha-se de novo para superavit orçamental em 2024”, disse. A líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, declarou que “todas as despesas que, por necessidade, ficaram autorizadas tinham cabimento orçamental sem pôr em causa as contas públicas”. Especialistas em finanças públicas também desconfiaram (devido aos rigorosos mecanismos de autorização da despesa) da possibilidade de um montante tão alto ter escapado aos controlos das instituições do Estado.
As críticas de Miranda Sarmento foram espoletadas pelo relatório de execução orçamental do primeiro trimestre da DGO, no qual se dava conta de um défice no primeiro trimestre de 259 milhões de euros em contabilidade pública, quando há um ano o Estado tinha encerrado os três primeiros meses com um excedente.
As comparações entre os dois trimestres, o de 2023 e o de 2024, são dificultadas, porém, por eventos extraordinários como a inclusão, no início do ano passado, do fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos na Caixa Geral de Aposentações (entrando assim no perímetro contabilístico das Administrações Públicas). Encaixe que “insuflou” as contas do Estado no ano passado, mas que, em paralelo, implica a responsabilidade futura do Estado - despesa, portanto - que terá de assegurar diretamente os pagamentos a estes pensionistas.
As mudanças fiscais aprovadas em 2023, como a redução do IRS, que implicam menos receita para o Estado, ou medidas ao nível das pensões ou nas carreiras da Função Pública, aprovados para 2024 pelo anterior governo, que exigem mais esforço do lado da despesa, também dificultam uma comparação entre trimestres.
Esta segunda-feira, o jornal Público cita um estudo do think tank Bruegel sobre as novas regras orçamentais europeias, em vigor a partir de 2025, e que metas deverá Portugal cumprir nesse novo enquadramento. Se o País apresentar a Bruxelas um plano a quatro anos, o Estado deverá obter, em média, excedentes no saldo orçamental primário, que exclui o serviço dos juros da dívida, de 2,5% se quiser cumprir as novas regras. A um plano de sete anos - que só será aceite pela Comissão Europeia a troco de reformas - os excedentes orçamentais deverão ser de, em média, 2,3%.
O excedente de 2023, já de si considerado histórico, de 1,2%; e o de 0,3% previsto pelo Governo para este ano - ambos em termos de saldo global em contabilidade nacional - são aplaudidos pelas instâncias europeias. Porém, as metas tornam-se de cumprimento mais difícil numa altura em que o Executivo se prepara para aprovar medidas com impacto orçamental considerável, como a recuperação de anos de carreira em classes profissionais da Função Pública e as mudanças no IRS.
O governador do Banco de Portugal e antigo ministro das Finanças, Mário Centeno, reforçou recentemente os seus alertas relativos à despesa pública e reconheceu que, perante um aumento de 1,1 mil milhões de euros nos gastos, há a possibilidade do Estado regressar aos défices nos próximos anos. No Parlamento, Centeno reiterou a ideia de que o Estado deve manter superávites orçamentais entre os 1% e 2%.
De qualquer das formas, as previsões mais recentes do banco central mantêm a perspetiva de um superávit de 1% em 2024, integrando apenas duas novas medidas nas suas previsões: a abolição das portagens nas antigas SCUT (aprovada no Parlamento) e a atualização do Complemento Solidário para Idosos.
A batalha dos números prossegue nos próximos dias. Miranda Sarmento, que já se comprometeu com novo excedente orçamental neste ano e no próximo, irá ao Parlamento na quarta-feira apresentar a sua avaliação das contas públicas. O PS, por seu lado, quer que o ministro detalhe quais as medidas não-cabimentadas que o novo Executivo acusa o anterior de ter feito. Dados que, segundo a SIC, já terão sido entregues ao ministério dos Assuntos Parlamentares pelo Terreiro do Paço.
A outra frente da "guerra" orçamental está em Bruxelas. A Comissão Europeia já terá enviado, na sexta-feira, a proposta de metas para a redução da despesa ao Governo, iniciando negociações que deverão resultar, no último trimestre, num novo plano orçamental que respeite as novas regras. Isto pouco depois de mais um elogio público ao desempenho orçamental português, na quarta-feira, pela voz do vice-presidente do órgão executivo comunitário, Valdis Dombrovskis, por ocasião da apresentação da avaliação e das recomendações do Semestre Europeu. Portugal saiu, este ano, da lista de países com desequilíbrios macroeconómicos onde estava desde 2014.
Bruxelas, em paralelo com os elogios à consolidação orçamental e ao ritmo de redução do endividamento público, reiterou a necessidade de se continuar o processo nos próximos anos, apesar das múltiplas pressões para o aumento da despesa, vindas até da própria Comissão.