Economia

Chegou a hora de a União Europeia ditar as regras das grandes plataformas da Internet

Facebook e Google ganham dinheiro com o trabalho alheio - mas ninguém obriga a usar Facebook ou Google. O debate que atravessa a humanidade inteira e a presidência Portuguesa da UE está longe de ficar fechado, mas uma coisa é certa: em breve as grandes plataformas que operam na UE passarão as ser auditadas e a partilhar receitas com os produtores de conteúdos e o fisco dos vários estados-membros

Pedro Siza Vieira, ministro da Economia, o moderador Ricardo Costa, jornalista e diretor-geral da Impresa, e Francisco Pedro Balsemão, presidente executivo da Impresa, durante o debate dedicado à transição digital. No ecrã à direita, devido à participação em videoconferência, surgem Ricardo Castanheira, conselheiro digital da REPER, e Clara Raposo, presidente do ISEG

E de repente abriram-se autoestradas pelo país fora e cada cidadão passou a ter um carro. Pelo meio, surgiram estações de serviço que disputam o tráfego rodoviário. Tudo estaria bem, não fosse o facto de não haver código da estrada. O cenário foi descrito na manhã desta quarta-feira por Pedro Siza Vieira, ministro de Estado, Economia e Transição Digital, mas serve apenas de metáfora dos desafios com que governos e humanidade em geral se confrontam com o aparecimento das grandes plataformas da Internet. “É como se estivéssemos a conduzir e a escrever o código da estrada ao mesmo tempo”, referiu o ministro durante o debate Transição Digital – Discutir o País, que foi organizado pelo grupo Impresa.

Pedro Siza Vieira, ministro da Economia, Ricardo Costa, moderador e diretor geral da Impresa, e Francisco Pedro Balsemão, presidente executivo da Impresa, na mesa de debate sobre a transição digital

Além do ministro da Economia, o debate contou ainda com Ricardo Castanheira,Conselheiro Digital para a Representação Portuguesa na Comissão Europeia (REPER), Clara Raposo, presidente do Instituto Superior de Gestão e Economia e Francisco Pedro Balsemão, presidente executivo da Impresa, que detém o Expresso e a SIC - e todos, de algum modo, concordaram com a ideia de que a Internet não parou de mudar o mundo, e de que chegou a hora de o mundo dizer o que quer da Internet. E se o mundo inteiro não conseguir esse consenso, pelo menos, que seja a União Europeia (UE) a tomar a liderança desse projeto.

O mote para o que terá de ser decidido entre Bruxelas e Estrasburgo até poderá vir dos antípodas – mais precisamente da Austrália, onde a Facebook e Google vão ser obrigadas a remunerar editores de meios de comunicação social pelos conteúdos que partilham nas respetivas redes sociais e plataformas, devido à entrada em vigor de nova legislação. .

Siza Vieira recorda que o tal código da estrada metafórico que vai ter de ser escrito ao mesmo tempo que milhões de pessoas usam a Internet não tem de ser obrigatoriamente mau para as grandes gigantes tecnológicas: “Este mercado tornou-se tão importante que é fundamental criar regulamentação. O pior que poderia acontecer para estas plataformas era assistirmos a uma fragmentação (do mercado europeu), com uma miríade de regras”.

O maior mercado do mundo

Por mais de uma vez, o governante recordou que “a UE é o maior mercado do mundo” e que essa posição pode ser importante não só para aplicar novas regras no espaço comunitário como ainda influenciar as plataformas e empresas que vêm de fora. A presidência portuguesa pode ter um papel importante na matéria - e o ministro da Economia garante que já foram alcançados os primeiros consensos que vão permitir fechar um capítulo importante numa futura legislação europeia (possivelmente aprovada depois da presidência portuguesa) que vai obrigar as grandes gigantes tecnológicas a declararem quanto e para onde encaminham os impostos.

Mas o debate permitiu confirmar que há mais duas iniciativas legislativas a concentrarem expectativas: o ato dos serviços digitais que está a ser desenhado pelos governantes europeus para criar um mercado único para os negócios e atividades suportadas pela Internet, e ainda a transposição da diretiva dos direitos de autor, que deverá ficar concluída até junho de 2021.

No caso do ato dos serviços digitais destaca-se a regra que vai obrigar as plataformas com quotas de mercado acima dos 10% da população europeia a submeterem-se a auditorias regulares, avaliações de risco e cuidados com os conteúdos que publicam. “O que não pode acontecer é os ditames serem definidos pelas plataformas e pelas entidades privadas e não pelos governos. É muito grave e é o que está a acontecer agora”, refere Ricardo Castanheira.

O poder eleito e o poder comercial continuam a seguir lógicas diferentes – e mesmo nas relações que as grandes plataformas estabelecem com outras empresas históricas ou de menor dimensão há uma discrepância latente. “A tática de Google e Facebook tem passado por dividir para reinar”, alerta Francisco Pedro Balsemão, quando questionado sobre os modelos de negócio aplicados pelas grandes plataformas que captam a preferência dos internautas com a facilidade de publicação e partilha de conteúdos, mas que se mantêm avessas a repartir os ganhos alcançados pela exploração publicitária de conteúdos produzidos por meios de comunicação social.

“Tem de haver um acordo coletivo”, defende o presidente executivo da Impresa, em relação aos acordos de partilha de receitas que terão de ser aplicados no futuro entre empresas de comunicação social e plataformas que são geridas por Facebook, Google, Apple ou Amazon.

A democracia precisa de meios de comunicação social credíveis e imparciais que servem de referência para a tomada de decisão de cidadãos livres – mas esses meios de comunicação social, que cresceram com o suporte das tiragens e da publicidade passaram a ter o modelo de negócio original em risco quando a Internet banalizou a gratuitidade dos conteúdos e passou a controlar a publicidade inserida nos meios de comunicação. “A perversão do negócio digital resulta do facto de assentar essencialmente sobre a publicidade e sobre a monetização dos conteúdos produzidos por outros”, explica Ricardo Castanheira.

Informação é poder

A máxima de que nas redes sociais o produto é o internauta ajuda a compreender apenas parte da problemática. A um nível superior, consegue-se igualmente identificar algumas das ameaças que plataformas, redes sociais ou aplicações dos mais variados fins podem ter quando transacionam dados pormenorizados dos consumidores para captarem publicidade ao mesmo tempo que criam novos mecanismos que levam esses mesmos Internautas a cederem mais dados – ou a consumirem a publicidade.

Entre os participantes do debate desta quarta-feira houve quem recordasse que esta mesma lógica de negócio poderá ter condicionado o referendo do Brexit, que ditou a saída do Reino Unido da UE, as eleições que levaram Donald Trump à presidência dos EUA, e também poderá não ser alheia às estatísticas que revelam que a França é dos países com maior taxa de rejeição de vacinas. Todos estes exemplos podem ter ajudado à saúde das contas bancárias das grandes plataformas tecnológicas, mas será que contribuíram para o bem da democracia?

Clara Raposo aponta a ciência como caminho que garante “maior certeza” nas decisões que terão de ser tomadas e que poderão potenciar o aparecimento de novos standards a nível mundial. O método científico também pode ser a ferramenta mais importante para combater mentiras e falsas notícias que deturpam a realidade e polarizam as populações, recorda a presidente do ISEG, sem deixar de aludir ao facto de muitos dos utilizadores de novas plataformas olharem "para informação como se fosse entretenimento”.

Clara Raposo defende que os meios de comunicação social podem ajudar a combater este enviesamento da informação distinguindo melhor o que é informação e opinião, mas também considera que deveriam ser criados melhores identificadores de informação e entretenimento. Sendo que as mudanças também terão de ser processadas a nível estrutural: ”Temos de levar as novas gerações a serem boas utilizadoras do mundo digital”, refere. “Temos de apostar na educação logo de tenra idade”, defende a presidente do ISEG, explicitando a necessidade de alertar para os casos de manipulação que podem ocorrer dentro das grandes plataformas tecnológicas. “Os cérebros humanos não podem ser só inteligência artificial e estupidez natural. Também têm de ter inteligência natural. E isso educa-se”, comenta.

A inteligência permitirá naturalmente a qualquer internauta concluir que aceder a cópias piratas de vídeos, música, ou jornais não estará propriamente dentro da legalidade nem ajuda ao negócio legítimo – mas nem sempre as empresas que disponibilizam as ferramentas mais inovadoras acautelam os direitos de terceiros.

Francisco Pedro Balsemão faz o reparo quando se trata de falar de sites piratas: “Não lhe chamamos pirataria, porque esse termo pode ter um lado um pouco romântico; chamamos-lhes ladrões de conteúdos”. O presidente executivo da Impresa recordou que os editores de jornais e revistas, bem como outros produtores de conteúdos têm de fazer investimentos avultados – sendo que, em dois cliques, um grupo editorial perde as receitas previstas para esses investimentos.

Além de defender mais ações de sensibilização da população, Francisco Pedro Balsemão defende a disponibilização de mais recursos técnicos e humanos para a Inspeção Geral de Atividades Culturais (IGAC) combater a pirataria na Web. No que toca às plataformas que permitem a publicação de cópias ilegais de obras protegidas pelos direitos de autor, o líder da Impresa apontou o dedo à “forma opaca como é feita a monetização de conteúdos” e à “assimetria” de meios e recursos entre empresas que gerem serviços digitais e produtores de conteúdos.

A discrepância entre as grandes plataformas americanas e restantes empresas históricas é incontornável. Ricardo Castanheira lembra que das 10 mil plataformas digitais que operam na UE, 9700 têm dimensões típicas de pequenas e médias empresas, sendo que 48% dessas plataformas são mesmo microempresas. O Conselheiro Digital da REPER lembra que a estratégia europeia terá de decidir se quer “investir em dois ou três grandes campeões digitais que competem com os quatro ou cinco grandes mundiais” ou se opta por apostar numa rede que dê competitividade a todas estas empresas de menor dimensão que têm surgido no velho continente.

Em ambos os casos o Spotify, consegue ser um exemplo de campeão digital: é a única plataforma europeia com dimensão mundial e ao mesmo tempo soube gerar negócio, combatendo a tendência de desvalorização da música, tirando partido de uma nova rede que fomenta o aparecimento de novos negócios.

Francisco Pedro Balsemão, presidente executivo da Impresa, e Pedro Siza Vieira, ministro da Economia, à entrada da Impresa

Apesar do sucesso de Spotify e de outros negócios que aí virão, o debate está em curso e tão depressa não deverá ficar concluído. Até porque o código da estrada a que o ministro Siza Vieira alude no início deste texto ainda não chegou à redação final – nem as plataformas que dominam a Internet chegaram ao final da estrada. E se não for a aplicação de regulação mais exigente, eventualmente, será através de outros mecanismos que um novo cenário tecnológico será montado na UE, depois da pandemia. “Há 20% do Plano de Resiliência e Recuperação que vão ser aplicados na aceleração digital”, conclui o ministro da economia. Os dados estão lançados.