Aos vinte anos, Manoel de Oliveira foi, entre outros mimos, campeão de salto à vara, habilidoso atleta e ginasta, e agora, oito décadas volvidas, só conseguimos lembrar-nos dessa sua faceta desportiva. Porque só pode ser desportiva a sua démarche perante o modo como ele adapta e actualiza para o presente o famoso conto de Eça de Queiroz.
Se calhar, é mesmo preciso ter 100 anos para voltar a ser menino e chegar ao ritmo e ao grau de eficácia deste "Singularidades de uma Rapariga Loura", em que muitos verão apenas um petit film. Pequeno na duração, é verdade (passam a correr aqueles 62 minutos), mas grande nos resultados. Tem a simplicidade dos justos e um sentido de economia desarmante.
Poderíamos dizer que se nota essa economia e essa urgência. Que Oliveira filma hoje contra o tempo e, em simultâneo, faz o mais barato possível onde outros só conseguiriam fazer caro e, provavelmente, sem o mesmo jeito e intensidade. Neste ponto, num sentido de poupança equivalente a soluções da narrativa, nunca Oliveira foi tão longe.A história do filme é banal. E cruel. É a de um guarda-livros de uma retrosaria fina que está bem instalado na vida: Macário, assim se chama. Num belo dia, ele olha para além do pequeno horizonte que tem debaixo do nariz e apaixona-se pela girl next door, Luísa Vilaça, menina que está à janela com um leque chinês nas mãos.
"Só que não é o leque que o seduz", como ouvirá Macário. É a menina loura. Mas o leque e a menina, aos olhos do homem, confundem-se. E como se este estrabismo, que nos tira a realidade e a razão dos pés, não fosse já suficientemente grave, a menina ainda esconde um segredo.Ouve dizer-se que desapareceram uns lenços. Depois, umas fichas de jogo e, mais tarde, um anel que será sinónimo de desonra: é que Luísa, filha da alta burguesia, tem uma tentação mórbida pelo roubo. Rouba pelo prazer de roubar, não por que precisa. É feita de uma natureza dupla como duplo era o álbum de Bob Dylan que serviu para este título. Sobre ela, está pronta a cair a ira de uma justiça cega que é sinal do nosso tempo. Não revelamos nenhum segredo, foi o Eça que o inventou: "Singularidades..." data de 1874.
Para o papel de Luísa, Oliveira escolheu uma jovem actriz que irradia luz por todos os poros, Catarina Wallenstein. Macário é Ricardo Trêpa. O seu tio Francisco, homem implacável, é Diogo Dória. Falta uma peça fundamental, a senhora que Macário encontra por acaso na viagem de combóio que Oliveira inventou. O papel é de Leonor Silveira, em mais uma aparição sublime. Da senhora, porque é uma invenção do filme e não do livro, não saberemos o nome. Em certa medida, é esta a personagem que representa o espectador e se tornará, como nós, na ouvinte dos males que se abateram sobre Macário.Manoel de Oliveira, mais uma vez, fica perante os grandes enigmas da humanidade que fazem do seu um cinema do destino. A vida é injusta e quase nunca se adapta aos nossos desejos, à nossa capacidade, tal como é injusta a posição daquele tio irredutível, Francisco, que não deixa Macário casar-se. Mas há talvez uma esperança no fundo do túnel deste filme de interditos, algo para lá da ilusão de uma história de amor que correu mal: um cinema humano, de amor pela arte e que tem em si gravado uma verdadeira filosofia.
Singularidades de uma Rapariga Lourade Manoel de Oliveira (Portugal/Espanha/França), com Ricardo Trêpa, Catarina Wallenstein, Diogo Dória
Terça-feira, dia 28, 22h - ante-estreia no Cinema São Jorge.
O filme chega às salas na quinta-feira. Na sexta, o Expresso publica uma entrevista com o realizador na sua edição impressa, no caderno 'Actual'.