PASSEI anos a entrevistar escritores. Um escritor adora ouvir-se a ele mesmo e tem quase sempre sobre o mundo opiniões grandiosas e revestidas a superioridade moral. Com raras excepções, qualquer escritor que tenha ganho o Prémio Nobel vê-se sempre a si mesmo como uma espécie de guardião da humanidade.
Günter Grass (nascido em 1927, na polaca cidade de Gdansk, antiga Danzig alemã), escritor, pintor, escultor, falou sempre assim, olhando a Alemanha e os alemães, sobretudo o passado nazi dos alemães, do alto da sua consciência cívica e da sua moralidade grandiosa. Na opinião dele, os alemães não se tinham limitado a andar atrás de Hitler como carneiros, não, os alemães tinham sido seduzidos por Hitler e tinham gostado de Hitler e deviam expiar essa culpa colectivamente.
Quando o Muro caiu em 1989, Grass ficou contente e celebratório mas, na sua opinião, os de Leste deviam ficar no Leste e o de Oeste deviam ficar no Oeste e os dois não se deviam misturar porque a reunificação das duas Alemanhas era um perigo e faria renascer o pior do nacionalismo alemão e da sua propensão para as aventuras militares e as invasões da Europa. Berlim continuaria dividida.
Como diria Woody Allen, que ficava com vontade de invadir a Polónia ao ouvir Wagner, Grass ficava com vontade de aniquilar a Alemanha quando ouvia o hino alemão. As duas Alemanhas em vez de uma impediriam a repetição do nazismo. A estupidez disto é colossal e lembro-me de que quando o ouvi dizer isto preto no branco numa das duas entrevistas que lhe fiz, pensei que a estupidez disto era colossal e pensei que não era o meu papel, de papel e lápis na mão e gravador aberto, dizer-lhe isto na cara. De resto, admiro alguns ensaios de Grass, acho "O Tambor" uma grande romance alemão, e tinha simpatia pela sua voz moral, a simplicidade destas propostas egocêntricas que os jornalistas tomam por boas verdades, babados que estão da admiração pelo escriba. Hoje, devaneios à parte, acho Grass um maçador, e um maçador que já escreveu os seus melhores livros, um maçador final. Um maçador que queria punir um povo inteiro no presente e empenhar as gerações futuras por causa de uma certa ideia sua. Os do Leste no Leste, mal vestidos e mal nutridos pelas sobras do comunismo, com Grass e os "best-sellers", e os do Oeste no Oeste, bem nutridos e bem vestidos, com Grass e os "best-sellers". Cada vez que vou a Berlim cidade aberta, penso na desumanidade de Grass e das suas teorias.
Pasmei quando ouvi esta nova confissão do escritor. Pertenceu às Waffen SS, a tropa de elite de Hitler, aos 17 anos, alistado à força. Era muito novo e não tem nada que se envergonhar disso mas a coisa "manchar-me-á para sempre". Só percebeu que estava nas SS "ao chegar a Dresden", estava-se em 44. Disse ele. A confissão veio acompanhada de uma operação de "marketing" colossal, tão colossal como a estupidez, destinada a vender uns bons milhares de exemplares da autobiografia "Descascando a Cebola".
Parece que só agora, ao cabo destes anos todos comendo fruta fresca, Grass se dispôs a descascar a cebola e chorar sobre as cascas. Aquela breve passagem forçada pelas forças armadas, que ninguém sabia que era uma passagem pelas SS, andou escondida nestes anos em que Grass interpelava o passado nazi da Alemanha. É evidente que 17 anos são 17 anos (e ninguém é completamente tolo aos 17 anos) e que o recrutamento foi obrigatório mas, se tanta inocência presidiu aos actos do adolescente Grass, por que é que nunca falou no assunto e pôs a cebola na mesa? Como pôde acusar os alemães de esconderem o seu passado nazi e a sua sedução hitleriana quando ele mesmo nunca contou a sua passagem pelas SS?
E assim, agora, desta maneira pública, orquestrada e com calendário de públicas apresentações e entrevistas e livro no prelo? Seria de esperar que a cebola fosse descascada em privado, porque um homem não chora, e que o segredo fosse divulgado com mais pudor, ou que a mancha fosse lavada no sossego e no silêncio da consciência.
Pode fazer-se "marketing" com tudo menos com um livro, respondeu Günter Grass aos acusadores. A quem pretende ele enganar mais uma vez com estas opiniões vazias e grandiosas? Um livro, hoje, é "marketing". E só é livro porque é "marketing" e Grass sabe isto tão bem como sabia do seu passado na força de assassinos de Hitler.
À força ou não, pouco ou nada me importa a pertença de Grass às SS, acredito que foi arrastado. O que me importa é a sua hipocrisia e a sua arrogância, os seus prémios de cidadão superior, ao qual tudo o que é humano é estranho. Numa entrevista à "Paris Review", e à pergunta sobre a predominância de animais na sua obra literária e estética, Grass respondeu que este mundo está povoado de seres humanos mas também há animais, pássaros, peixes e insectos. E que os humanos se extinguirão com um grande sopro venenoso, ao contrário dos dinossauros e dos seus ossos limpos nos museus. Eu, se fosse a ele, ficava com os animais, que não sabem descascar cebolas nem têm audiência cativa.