O autor escreveu um livro de uma maneira, mas os tempos mudaram e a reação da sociedade já não aceita as descrições como foram feitas. Em causa está a obra infantil de Roald Dahl e as ressonâncias preconceituosas do imaginário do escritor, que está a ser adaptado a novos tempos, novas vontades.
Entre as principais mudanças nos textos aparecem principalmente as descrições da aparência física de vários personagens. Palavras "gordo" e "feio" foram retiradas das novas edições. Em “Charlie and the Chocolate Factory”, o insaciável Augustus Gloop passa a ser descrito como alguém "enorme", enquanto a Sra. Twit, em “The Twits”, já não é referida como alguém "feia e bestial", surgindo apenas como "burra", explica um artigo no jornal francês “Le Point”.
No total, mais de cem alterações terão sido feitas nos textos escritos por Roald Dahl. Questionada pelo jornal britânico “The Guardian”, a Roald Dahl Story Company - sociedade que geria a obra do autor e que em 2022 foi adquirida pela Netflix por cerca de 34 milhões de euros, tendo depois do negócio sido afastados os membros da família Dahl - garantiu "que não é incomum rever o idioma" durante uma nova impressão e que quaisquer alterações foram "pequenas e cuidadosamente consideradas".
“Queremos garantir que as maravilhosas histórias e personagens de Roald Dahl continuem sendo apreciados por todas as crianças hoje”
porta-voz da Roald Dahl Story Company, em declarações à “Variety”
As mudanças feitas pela Puffin Books, uma divisão da Penguin Random House, foram relatadas primeiro pelo jornal britânico “Daily Telegraph”. Um porta-voz da Roald Dahl Story Company disse à Variety : “Queremos garantir que as maravilhosas histórias e personagens de Roald Dahl continuem sendo apreciados por todas as crianças hoje. O nosso princípio orientador tem sido manter as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito aguçado do texto original."
Acrescentou ainda que “como parte do processo de revisão da linguagem utilizada", recorreram à parceria com o Inclusive Minds, uma organização dedicada à questão da inclusão e na literatura infantil. O jornal “The Guardian” sublinha, contudo, que a revisão atual começou em 2020, ainda antes de sociedade gestora da obra de Dahl ter sido adquirida pela Netflix .
As mudanças, contudo, não foram bem recebidas por todos, tendo sido mesmo duramente criticadas por Salman Rushdie no Twitter . “Roald Dahl não era nenhum anjo, mas isso é uma censura absurda. A Puffin Books e a propriedade Dahl deveriam ter vergonha de si mesmas”, criticou o autor dos “Versículos Satânicos” que agora apresenta “Victory City”.
A PEN America, uma comunidade de 7.500 escritores que defende a liberdade de expressão, citada pelo mesmo jornal “The Guardian” disse estar “alarmada” com os relatos das mudanças nos livros de Dahl. E Laura Hackett, uma assumida admiradora de infância dos livros de Dahl que agora é vice-editora literária do jornal londrino “Sunday Times”, foi ainda mais longe: “Os editores da Puffin deveriam ter vergonha da cirurgia malfeita que realizaram em algumas da melhor literatura infantil da Grã-Bretanha. Quanto a mim, guardarei cuidadosamente minhas antigas cópias originais das histórias de Dahl, para que um dia meus filhos possam apreciá-las em toda a sua glória colorida e desagradável.”
AUTOR POLÉMICO
Roald Dahl foi acusado, ao longo da sua carreira, de misoginia, racismo e anti-semitismo e, em 2020, a sua família emitiu mesmo um pedido de desculpas pelos "comentários preconceituosos" do escritor. Morreu aos 74 anos e os seus livros, que venderam mais de 300 milhões de cópias, foram traduzidos para 68 idiomas.
O escritor nasceu em 1916 em Llandaff, no País de Gales, e morreu em Oxford, em1990. Filho de noruegueses, a sua infância foi marcado por dois acontecimentos trágicos: em 1920, quando Roald tinha três anos, sua irmã de sete, Astri Dahl, morreu de apendicite e poucas semanas mais tarde, seu pai Harald também morreu, vítima de uma pneumonia, aos cinquenta e sete anos.
O escritor atingiu notoriedade na década de 1940, tendo ficado conhecido principalmente por seus livros infantis, como “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, “Matilda” ou “As Bruxas”. Várias de suas obras foram adaptadas para o cinema. Desenvolveu ainda uma carreira de sucesso como escritor de contos macabros para adultos.
Dahl casou-se com a atriz americana Patricia Neal, o seu casamento durou 30 anos e gerou cinco filhos: Olivia (que morreu de sarampo e encefalite em 1962, aos sete anos), Tessa, Theo, Ophelia, e Lucy. Aos quatro meses de idade, Theo ficou gravemente ferido quando seu carrinho de bebé foi atingido por um táxi em Nova Iorque.