Quem é Taika Waititi? É muito provável que a maioria dos leitores não saiba, ou simplesmente não tenha fixado, o nome deste ator neozelandês de 44 anos, filho de um camponês maori e de uma professora com ascendência irlandesa, escocesa e judia. Mas Taika já anda por aí há uns tempos e, entre uma estreia na longa-metragem como realizador e um papel no último "Avengers", lá foi pondo os pés em Hollywood.
Foi intérprete e depois começou a fazer filmes, não propriamente dos melhores - basta pensar-se na vampiresca aventura que ele assinou há seis anos com o também neozelandês Jemaine Clement, "O Que Fazemos nas Sombras" (estreou-se por cá nas salas), 'paródia de horror' (e para alguns de culto) em torno da qual (e isto para ser brando) convinha criar um cordão sanitário... Mas no ano passado veio a explosão, aconteceu em Toronto, e ela chamou-se "Jojo Rabbit". Saiu no Canadá com o Prémio do Público que é há muito indicador certeiro de Óscares (o de Melhor Filme em particular) e aí está ele, nomeado para seis. É um daqueles filmes entre o oportuno e o oportunista que tem a mais-valia de tirar partido do seu enorme efeitosurpresa.
Porquê? Imagine um rapaz de dez anos na Alemanha nazi do pré-II Guerra Mundial (o Jojo do título, papel de Roman Griffin Davis), devidamente integrado na Juventude Hitleriana, e que tem como melhor (e imaginário) amigo o próprio Hitler (que Taika Waititi também interpreta)? Imagine que este, por seu lado, é um histriónico, caricatural e efeminado ditador que dá bons e sábios conselhos ao petiz.
Um filme a misturar infância e nazismo sem ser "sério"? É matéria inflamável, claro... Mas há mais.
Agora imagine que o nosso Jojo, que tem uma progenitora chamada Rosie com a cara de Scarlett Johansson (personagem que o realizador confessou ter sido influenciada na Ellen Burstyn de "Alice Já Não Mora Aqui"), descobre que a mãe, nazi na aparência, esconde em casa uma miúda judia ligeiramente mais velha do que ele - isto é um ultraje aos ensinamentos do Führer.
Pode-se fazer um filme daqui e zombar da situação ao mesmo tempo? Será possível dar forma cinematográfica ao Mal absoluto do século XX e em simultâneo sugerir sobre esse Mal um olhar insolente? Nada de novo, dirá o leitor, nada a que o cinema não esteja habituado desde que Chaplin realizou "O Grande Ditador", ainda a II Guerra Mundial estava no início. Acontece que "Jojo Rabbit" também vai provar ser outra coisa: um filme tremendamente manipulador a nível emocional, sobretudo quando se ancora num eixo mãe-filho que sempre faz chorar as pedrinhas da calçada. Sinal de que os atores são bons e convencem? Certamente, é preciso admiti-lo. Mas também há aqui situações em que o espectador, ao pensar na História e no que ela representa, só pode ficar com calafrios na espinha. É que há fantasmas de infância que, mesmo representados num espírito de cartoon, correm o sério risco de se tornarem indecentes.
E contudo, dizemos em benefício do filme que jamais o traquinas Waititi nos impõe um falso discurso moralizante. "Jojo Rabbit" não nos mostra a crueldade do nazismo pelos olhos de uma criança como o fizeram "A Infância de Ivan", de Tarkovski, ou "Vem e Vê", de Klimov (dois filmes que, provavelmente, Waititi nunca viu...), não pode ombrear com essa seriedade, mas também não quer: prefere refugiar-se, para o melhor e para o pior, numa farsa slapstick com resultados desiguais. Não é um filme histórico, apesar de se passar numa vila alemã durante a guerra, até à libertação. É antes um filme que não sabe o que fazer com a História e que, por isso, se atira de cabeça para uma fábula permeável a todos os anacronismos, como a presença daquelas covers alemãs de canções dos Beatles e de David Bowie que não têm nada que ver com a década de 40.
Waititi deseja sempre estar mais próximo de um Mel Brooks que de Tarkovski ou Klimov. Por vezes, Jojo descobre que o imaginário em que ele foi educado é falso e que aquela crueldade é... uma fruta cristalizada. Outras vezes, o miúdo dá-se conta de que tudo o que gira à sua volta é baseado na mentira. Quer dizer: não há heróis neste "Jojo Rabbit", tal como, no fundo, não há vilões.
Nem há nada de épico nas suas personagens, mesmo na da mãe de Jojo (e o plano mais cruel do filme é com ela). Pelo contrário: o que Waititi explora é um universo de 'criaturas medíocres' desligadas, pela sua própria natureza, da própria História e do que nela representa uma figura como a de Adolf Hitler, por exemplo.
É óbvio que, em Toronto, e sempre que falou com a imprensa, Taika Waititi defendeu-se quando lhe sugeriram que ele podia ter sido um bocadinho mais antifascista, lutando assim contra as falsas verdades de todas as novas vagas de extrema-direita que têm vindo a alastrar pelo mundo - e pelos Estados Unidos em particular desde que Trump chegou ao poder.
"Não nos podemos esquecer que o ponto de vista do filme é o de uma criança de dez anos", contou Taika no Canadá em setembro passado.
"E é por ter 10 anos que ele se entusiasma tanto com Hitler. Só que o meu Hitler também tem 10 anos de idade mental. É um folião, um bufão infantil e eu também sou assim na vida, foi por isso que o interpretei! É preciso relativizar as coisas. Naquele tempo, na Alemanha dos anos 30, qualquer miúdo sem pai que estivesse a crescer sentir-se-ia menosprezado se não fizesse parte da Juventude Hitleriana. É por isso que Hitler surge no filme como um amigo imaginário, uma figura paternal que, para o miúdo, é naturalmente o seu herói." Quando "Jojo Rabbit" termina, é provável que muitos espectadores não saibam como responder a este fogo de artifício. O que é certo é que Taika Waititi projetou o seu filme (e as palavras são dele) como uma "sátira antiódio" que, segundo o realizador, quer combater "o extremismo e a intolerância." "Jojo Rabbit" funciona muito melhor como história coming of age do que como comédia pastiche - neste terreno, parece um Wes Anderson de segunda linha. Mas tem o coração no sítio certo, diz Taika Waititi. Há que dar-lhe o benefício da dúvida.
JOJO RABBIT
De Taika Waititi
Com Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie, Taika Waititi, Scarlett Johansson, Sam Rockwell
Comédia dramática M/12