Cultura

A voz do despojamento

“Rei Lear” no Teatro Nacional D. Maria II 
numa encenação de Bruno Bravo

Paula Só no papel do rei Lear
foto Filipe Ferreira

Bruno Bravo não duvida: “Se alguém dedicasse toda a sua vida ao ‘Lear’ de Shakespeare não viveria o suficiente para abarcar o seu todo.” A história do rei da Grã-Bretanha que decide abdicar do seu lugar e dividir o reino pelas três filhas é para Bruno Bravo um texto (existem aliás dois textos, Quarto, de 1608, e Folio, 1623) que permite milhares de caminhos.

Como encenador, e a partir de uma adaptação de João Paulo Esteves da Silva, Bruno Bravo escolhe focar-se em algumas questões: “O que é o homem quando nada tem? O que é o homem quando tudo perde?” A verdade na política é possível? Mas o homem é aqui uma mulher. É-o na medida em que a atriz Paula Só assume a interpretação de “Rei Lear”, dando continuidade a uma opção que, embora rara, não é totalmente excecional, tendo em conta que, a nível internacional, grandes atrizes têm tido oportunidade de interpretar personagens masculinas em peças de Shakespeare. Não é também uma mulher, porque o género não é importante. Porque Lear, para Bruno Bravo, é um signo maior do que o homem ou do que a mulher: “O rei é sempre uma figura maior do que o homem, mas quando Lear percebe que perde tudo, ao abdicar do trono, torna-se homem num sentido mais plural. Transforma-se no primeiro homem branco, como dizia Harold Bloom, a figura que inicia a Europa, o Ocidente.” A tragédia que se segue à sua decisão de abdicar do trono, a perda, leva-o à loucura, ainda que seja na demência que encontre a verdade: “Há um discurso na loucura quase filosófico que considero maior do que o género feminino ou masculino. Embora haja traços na peça que são sobretudo masculinos é interessante que seja uma mulher a dizê-los.”

Foi com Eunice Muñoz que Bruno Bravo começou a trabalhar neste texto, até a própria atriz ter desistido por considerar que era um projeto demasiado exigente para a sua adiantada idade. Veio Paula Só, que mantém como Eunice o registo da grande atriz, a voz fraca também, que se adequa aos velhos e vencidos. A questão familiar, o núcleo íntimo como lugar de toda a violência, é aliás outro dos assuntos a que Bruno Bravo atendeu, e claro, à questão política, não menos importante do que as outras, e à sua relação com a verdade. Num cenário (Stéphane Alberto) no qual só restam “os objetos absolutamente necessários”, mergulhados numa enorme negritude, um cavalo é o único símbolo de poder. “Queria jogar dentro da ideia do vazio, e daí a ausência de cor e a predominância de elementos cenográficos que imitam a pedra.” Para o encenador, é importante também não esquecer que a peça é um livro: “Como livro tem uma componente fortíssima e foi isso que nos levou a entusiasmar-nos com a palavra, com a voz do despojamento.”