Sol e céu limpo deixam antever um risonho dia de outono. Começa bem, com uma breve caminhada junto à Ria Formosa, em Cabanas de Tavira. A meio da manhã, no Restaurante Noélia, só se vislumbra, ainda, a mulher que dá nome a esta casa. Por norma é a filha, Beatriz, que trata das sobremesas e reservas, mas como está de baixa teve de ser Noélia a adiantar as mousses de chocolate e de Mascarpone. Hoje, especialmente, como tem outros dois funcionários a menos, não pode vacilar. Os imprevistos “são coisas que não conseguimos controlar e cada vez mais temos de aceitar”, resigna-se.
Por esta altura, já fez o habitual périplo pelos fornecedores. Às 8h00 liga para os mercados para saber o que a espera. “Se não houver o peixe que quero em Tavira, tenho de ir a Olhão, a Faro ou, esporadicamente, à Isla Cristina, em Espanha”. Ao mercado de Cabanas vai comprar algumas frutas e legumes à dona Maria João. Quanto às ostras, não as serviu um ano por causa de um “roubo” no Moinho dos Ilhéus, mas já estão de novo com o tamanho certo. “Sou muito fiel, podia ter ido à procura de outro sítio, mas não fui. Estas ostras sabem muito a mar, são muito saborosas e grandes”, valoriza.
No interior da exígua cozinha, o ritmo aumenta quando as mesas vão sendo ocupadas. Ao jantar e sobretudo em época alta, seria bem pior, mas não há tempo a perder nem mãos a medir. Em maré de confeção e empratamentos, poucos são os hiatos de descanso ou silêncio. A chef atira indicações ao segundo: “Ó Maria vou precisar dessas espinhas para pôr aqui no caldo, está bem?”, “Tens aí uma tábua?”, “O abacate não está em condições!”. Até o tipo de pão usado na açorda é importante: “O nosso padeiro esteve de férias e tivemos de comprar noutro lado. Se o produto for diferente, tudo fica diferente”. “Onde é que anda a minha faca do peixe, aquela comprida, já a perderam?”, indaga Noélia, pronta para dar gás à preparação de um ceviche de dourada de evidente frescura. Corta o peixe aos bocadinhos, cuidando que saia “perfeitinho”, tempera com sumo de limão, abacate e um pouco de gengibre. E já está.
Família, serviço, empenho
Beatriz e o marido Alexandre Martins, no serviço de sala, têm sido “o braço direito” de Noélia, que espera que a dupla tenha capacidade “de continuar” o seu trabalho. “A miúda está a crescer e sinto que lhe estou a passar o gosto, e o Alexandre gosta cada vez mais de vinhos, entrega-se mais à casa e aos clientes. Acho que ele tem vontade e isso para mim é muito bom. Sinto que estão a assumir e, assim, os clientes já não são só meus, são também deles e passam a ser amigos”, comenta a anfitriã. “Todos os dias queremos crescer e tenho noção que temos de melhorar, especialmente no serviço, para também fazer jus ao nome da Noélia e do espaço. Nem sempre conseguimos que tudo corra bem, mas fazemos o máximo e estamos a trabalhar para isso. É a nossa vida, é por isto que lutamos. O esforço da Noélia é um espelho para nós”, confirma Alexandre, que já recebeu de Hugo Viana camisolas autografadas do Sporting, o clube do coração.
Para a chef, as filhas Beatriz e Vânia, e a neta Sofia, são o seu mundo. “Vivo para elas e para o restaurante, não consigo viver sem isto”, confessa, mesmo sabendo da exigência desta cozinha. “Quando gostas do que fazes não há esforço, mas dedicação e amor. Quero tentar passar para as pessoas que vêm à minha casa o carinho com que eu lhes faço a comida. Dar de comer a alguém é um ato de amor porque essa pessoa sobrevive com a comida”, defende. Sentadas na esplanada depois de comerem as “Pataniscas de polvo com arroz de coentros”, Adriana Saraiva e Ana Figueiredo Já não vinham aqui há muito tempo e notam o empenho. “Ela destaca-se pelo empreendedorismo, a inovação e a resiliência”, aponta Adriana, satisfeita com a linha “diferenciada” no menu e os ingredientes. “Privilegia muitíssimo o que é de origem piscatória, trabalha o que há de melhor no Algarve e dá-lhe aquele twist criativo e fora da caixa em relação às outras ementas da região. Isso tem vindo a ser marcante na identidade da sua cozinha. Ao mesmo tempo, vai-se reinventando. São sempre pratos muito interessantes e muito bem confecionados”, refere Adriana.
Ana Figueiredo realça o facto de Noélia estar “sempre à procura de mais” e gostar de aprender. Adriana concorda: “As pessoas veem só a ponta do icebergue, e na verdade, os casos de sucesso têm na base muita investigação e investimento pessoal desde a raiz até ao prato chegar à mesa com aquela apresentação e aromas. A Noélia vai à praça à procura do mais fresco e esse acompanhamento será parte do segredo do seu sucesso”. Dir-se-ia que parte da equação é estudo e a outra instinto natural e treino do palato. Noélia é uma autodidata, deita-se “com um livro e acorda com outro” e pesquisa na Internet. Mas também valoriza a tentativa e o acaso, como o detalhe que salta à vista depois de folhear uma obra 20 vezes. O clássico “Arroz de limão”, por exemplo, nasceu de um arroz cremoso que levava natas, até Noélia as substituir pelo citrino. “Correu perfeitamente bem. Às vezes as coisas estão à nossa frente e nós não as queremos ver”.
As raízes
Noélia Jerónimo nasceu em Tavira e os pais são da serra algarvia. Mora desde os seis anos a 500 metros do restaurante, no “meio das amendoeiras” e perto do Forte de São João da Barra, em Cabanas de Tavira. A sua vida é indissociável da Ria Formosa: “A minha mãe era ameijoeira e eu ia muito ter com ela. Tenho muitas memórias naquelas barreiras, a cantar e a brincar, fazia das árvores microfones. Fui criada dentro de água, a minha mãe apanhava tudo aquilo e levávamos os caranguejos para casa. Com seis ou sete anos de idade, ia à noite com o meu pai aos chocos, com lanternas. Fui absorvendo esse mundo e mexe comigo”, recorda. Já um pouco mais crescida, ia até ao supermercado comprar latas de sardinha ou outro petisco, cozia batatas e fazia uma salada de tomate. São essas as “primeiras memórias” de ter cozinhado algo.
A 15 de julho de 1985 abriu uma pastelaria neste local com o marido, Jerónimo. Faziam grandes tostas de atum, galinha, queijo e tomate, que as pessoas “adoravam”. Compraram, entretanto, a pizzaria ao lado. Noélia começou misturar “umas coisas engraçadas” nas pizzas, as pessoas deixaram de as comer e então vão surgindo “uns pratos engraçados”. “E tudo começou assim, sem ser planeado, a vida a acontecer naturalmente”, explica. Há 27 anos que os holandeses Agnes e Edo Das passam alguns meses por ano em Cabanas. Acompanham o trabalho de Noélia desde o tempo da pastelaria, quando “there was only coffee and some bolos” e as tostas de atum. Veio depois a pizzaria e um pequeno restaurante “com quatro ou cinco mesas, mas que foi realmente soberbo desde o início, e ela muito simpática!”, lembra Agnes, para quem este “é o melhor restaurante de Cabanas”. À tarde, marcavam com outros holandeses “um copo e uma tosta, queijo e pequenos snacks e era sempre muito bom”. Fã do “Atum braseado”, Edo realça as “mãos maravilhosas” da chef para “fazer das coisas especiais ainda mais especiais”. Se no início “era um pouco nervosa” por não saber “como fazer crescer o negócio”, agora já o vê de outra perspetiva, nota.
Antigamente, “havia muito verde e não havia edifícios, era completamente diferente”, comenta Agnes. A ideia é reforçada pelo marido: “Muita coisa mudou. Estão a cometer um grande erro em Portugal. Não olharam para o exemplo espanhol e cometeram o mesmo erro construindo imenso na costa. Isso pode ser um problema no futuro em Cabanas”, avisa. Noélia sente que “não há em Cabanas capacidade para tanta construção” nem para receber em julho e agosto “tantos turistas”, que ficam “muito chateados porque há filas para tudo!” “A costa e esta ria são as melhores do mundo. Já viste a sorte que temos em ter uma ria destas à nossa frente? Se a conseguirmos preservar, é algo que podemos deixar para os nossos filhos e netos. As pessoas continuam a vir e a apaixonar-se, espero é que acabem com estes monstros que estão a fazer à volta. E andam a tirar as amendoeiras e a plantar abacateiros. Não é justo e não há água. A alfarroba, o figo e a amêndoa são a nossa cultura. Porque estamos a inventar? Percebo que seja rentável, mas já viste a quantidade de água necessária e a sustentabilidade do planeta? O que vamos deixar?”, questiona.
Sonho a acontecer
Em 2007, Noélia e Jerónimo juntaram as áreas da pastelaria e da pizzaria e abriram o Restaurante Noélia & Jerónimo, entretanto rebatizado para Restaurante Noélia. “Foi aí que o sonho começou a acontecer”. A chef sempre quis “fazer a diferença”. Um dos primeiros pratos que serviu foi um “Bife do lombo à Portuguesa”, mas hoje é uma “mulher de peixe”. Conquistou os clientes pelo palato, começando a servir pratos como as obrigatórias “Pataniscas de polvo com arroz de coentros”, a “Açorda de amêijoas” ou o “Polvo trapalhão”, que é guisado com batata doce. Como uma bola de neve, o restaurante foi crescendo anualmente e colecionando enchentes, sobretudo ao jantar e no verão. Tornou-se numa referência nacional.
“Começamos sempre pelo sabor. Há pouco tempo esteve aqui um chef com três estrelas Michelin e disse: Uau, isto é como fazer sexo! Por que é que eu não vim aqui antes!? Sabes, a comida tem de estar bonita, mas se fechares os olhos e comeres, pensa até onde o teu palato te pode levar, ou seja, às memórias de uma vida. É isso que tu consegues fazer”, apreciou, para gáudio da cozinheira: “Sabes o que é ouvir isto de alguém que tem três estrelas? Quero ter uma apresentação mais bonita, claro, sinto e sei que tenho de ter mais pessoas dentro da cozinha para as coisas correrem melhor, mas aposto cada vez mais no sabor”.
No que toca a sabores, são as influências do mar e da ria a mandar. O Restaurante Noélia (Avenida Ria Formosa, 2, Cabanas de Tavira, Tel. 281370649), dispõe de uma ementa mais fixa e outra elaborada com o que há de mais fresco no dia, o que faz com que as criações tenham de ir mudando. E as mesmas proteínas geram caminhos distintos. Nas entradas, já se serviu “Gaspacho de manga com robalo marinado”, “Vieiras com molho de coco”, “Salmonete braseado com molho de espumante”, “Figos com queijo” e a “Muxama”, por norma com gaspacho e figo.
Mar e serra
Os arrozes de forno têm cada vez mais adeptos. Podem ser de peixe, lulas, carabineiro ou com espargos e Black Angus... Nas carnes salientam-se os inverneiros cozidos, a “Açorda de galinha” e alguns pratos com produtos de serra. A chef lembra-se muito da avó com a “Galinha cerejada”. “Ela cozia a galinha, levava-a a cerejar no forno e depois fazia um arrozinho. Aquilo era tão bom, tão bom... São aqueles sabores que nos marcam para a vida”, afiança. Quando a avó de Noélia vinha vender milho a Tavira “montandinha na sua burrinha”, dizia sempre que ia ao Algarve, embora morasse a 11 quilómetros. “Não consideravam a serra Algarve. Muitas vezes, o Barrocal algarvio fica esquecido, o que não deve acontecer porque é muito bonito e a serra de Tavira também”, defende. A chef não se esquece das origens: “O Xerém é um dos pratos que cada vez mais quero ter para que possam perceber quão delicioso é. Acaba por ser mar, serra e litoral”.
Um dos seus produtos preferidos é o carabineiro, com que prepara o delicioso “Arroz de carabineiros”, os “Carabineiros com arroz de gambas” e o xerém ou açorda de carabineiros. “É um produto de luxo. O néctar da cabeça dos carabineiros, para mim, é quase só para dar aos deuses (risos). Não há palavras para explicar, é realmente maravilhoso. Imagina comeres um xerém com aquele néctar todo em cima, é de levar aos céus!”, dignifica a chef. Outra proteína de bandeira é o atum. Este ano, Noélia trabalhou-o menos porque o que arranjou era “extremamente magro e não tinha a mesma pujança”, ficando mais seco e perdendo o brilho mais facilmente. A chef prepara vários pratos com a barriga de atum, além do popular “Atum braseado” com cenoura algarvia ou da “Cataplana de atum”. Outra cataplana bastante apreciada é a de arroz de robalo. Contas feitas, Noélia não tem uma sugestão de eleição. “Os pratos que gosto mais são talvez aqueles que ainda não inventei (risos)”. Nos doces, Beatriz prepara um “Bolo de queijo com figos espetacular”, “Tarte de amêndoa espetacular” e uma “Tarte de alfarroba cada vez melhor”.
Reconhecimento e dificuldades
Durante a carreira, Noélia satisfez muitos apetites e fez amigos para a vida. Um deles é Miguel Esteves Cardoso, que se rendeu ao seu talento desde a primeira hora e escreveu, em 2015, um artigo afirmando que “o melhor restaurante do mundo é o Noélia e fica em Cabanas de Tavira”. Esse foi o “pontapé de saída para todas estas coisas que têm vindo a acontecer”. “Ele e a Maria João são extremamente importantes para mim. Tenho uma gratidão para a vida por ele e por todos os que apostaram em mim, escreveram e gostam de mim”, agradece a chef. Outro dos admiradores é Miguel Sousa Tavares, que “gosta imenso” de vir ao restaurante e é fã do “Arroz de sardinhas”. O amigo Ruy de Carvalho aprecia muito ostras, sopas, peixe galo e açorda. João Portugal Ramos já aqui trouxe o rei da Suécia e o ator Ricardo Pereira também vem “muitas vezes” com a mulher, tal como Ricardo, ex-guarda redes do Sporting e da Seleção Nacional. Mais do que a fama, a anfitriã quer que esta “seja uma casa de amigos”, porque para si todos são importantes.
Em 2018, o Restaurante Noélia alcançou o primeiro Garfo de Prata no Guia Boa Cama Boa Mesa, do Expresso, prémio que mantém até hoje. “E pode ficar muito bem assim, não preciso de mais. Só preciso de manter a minha presença, é importante para mim. Tenho medo de um dia perder, muito medo de não ter capacidade de continuar no futuro, porque tenho muitas dores nas pernas”, lamenta. Seguiu-se o difícil período da pandemia, em que o restaurante teve de fechar e acabou por ser uma “aprendizagem de vida”. Ao lado do chef Rui Silvestre, do Vistas, Noélia começou por ajudar os hospitais e depois, com alguns apoios, deram de comer “a mais de 8 mil pessoas” carenciadas. Depois foi a vez das famílias de ucranianos, indianos e portugueses, que se infetaram com covid: “Dei de comer durante mais de um mês a 16 pessoas, até garrafas de gás comprei, nunca deixei que lhes faltasse nada. É triste depois perceber que, quando precisamos, deixam-nos para trás à primeira oportunidade. Fiquei sem essa equipa”, critica. A própria Noélia se infetou com covid. Foi internada no Hospital de Faro e parou dois meses. “Em Cabanas não foi fácil, diziam que a Noélia tinha trazido a doença para Cabanas. Fomos um pouco postos de parte e foi um período difícil na minha vida”, confessa. Ainda assim, recebeu o apoio de colegas de profissão como Justa Nobre e Leonel Pereira, que lhe ligavam “todos os dias”, e Vítor Matos.
Chef do Ano
Um dos maiores sucessos foi alcançado em 2021, quando foi distinguida pelo Guia Boa Cama Boa Mesa como “Chef do Ano”. Quando anunciaram o seu nome na cerimónia, levantou-se, incrédula, e foi ao palco receber a distinção das mãos de Francisco Pinto Balsemão. Visivelmente emocionada, agradeceu a distinção e a entusiástica ovação dos outros premiados. Recorda o que aconteceu com carinho: “Não acreditava, acho que ainda hoje me custa a acreditar (risos). Há duas coisas nesta vida em relação às quais não posso nem quero falhar, ao Miguel Esteves Cardoso e às pessoas que apostaram em mim no Boa Cama Boa Mesa. Estar presente naquela gala é algo que não tem explicação. Ser acarinhada por todas aquelas pessoas, meus amigos e colegas de grandes restaurantes, muitos com estrelas e trabalhos lindíssimos, e poder fazer parte da vida deles... Têm carinho por mim e eu por eles. Continuo a considerar-me a cozinheira dos chefs, uma espécie de mãe com que eles sabem que podem contar”.
Para Noélia, ser Chef do Ano “foi 'O' prémio”. “Fez diferença na minha vida. Muitas portas se abriram graças a isso, acho que foi um dos motivos pelos quais estive no MasterChef [ao lado de Ricardo Costa, do The Yeatman, e Pedro Pena Bastos, do Cura]. E foi o reconhecimento do meu trabalho e dedicação de vida. Comecei aqui aos 14 anos e estou com 51. É uma vida no mesmo sítio”, salienta. A guardiã da Ria Formosa diz que não precisa de estrelas nem pretende ir para Lisboa. Prefere continuar a fazer magia à mesa no “seu” Algarve.
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso
50 ANOS RECHEIO
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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