50 Anos, 50 Restaurantes

2019: um oceano de criatividade e a alta cozinha de um austríaco no Algarve

Ocean é mais do que o nome de um restaurante com duas estrelas Michelin, em Porches. Designa uma experiência total, em que os sentidos se convocam por inteiro para um 'mergulho' no mar. Em 2019, o comandante da cozinha, Hans Neuner recebeu pela segunda vez e de forma inédita, o prémio de Chef do Ano pelo Guia Boa Cama Boa Mesa. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
Entrada do Ocean é marcante
VASCO CELIO/STILLS

Abre-se a porta e soltam-se os primeiros “ahhh”... Delicadas peças de cristal e os candeeiros levam a imaginar medusas. Reparamos nos corais e na tapeçaria da artista algarvia Vanessa Barragão alertando para os efeitos das alterações climáticas. O azul das paredes, o padrão da carpete e os suportes de velas nas mesas também fazem pensar no mar, que preenche a janela dianteira. Ao lado, a cozinha aberta, o 'navio' onde Hans Neuner e a sua equipa embarcam o cliente rumo a outras paragens. “Feche os olhos, inspire / mergulhe nestes sabores intemporais / cores avassaladoras, implausíveis / e texturas surreais / Abra os olhos, respire: bem-vindo ao Ocean!”. No início do menu de degustação “Na Rota dos Descobrimentos”, que antecedeu o atual, convidava-se o cliente a despertar os sentidos para o mar. Esse é o farol da experiência no Ocean, o premiado restaurante do Vila Vita Parc, em Porches. Cerca de 90% do que se serve nas 13 mesas deste espaço de fine dining vem do oceano.

Foi no mar que se inspirou a renovação da sala, que em 2016 “já não combinava com a arte e a gastronomia” contemporânea do chef. Testaram-se vários tons de azul e a equipa sentou-se “dias e dias” na sala, observando a mudança de atmosfera ao cair da noite. “Entrar ainda de dia e ver a lua a subir e as cores a mudar, dentro e fora, é único”, constatou o gerente do resort, Kurt Gillig. Com a orientação e o investimento dos proprietários, nivelaram-se as dimensões da comida, espaço, vinhos e serviço, para um match absoluto com o nome do restaurante: “Está sentado no restaurante Ocean, mas também sentado no oceano”, resume Gillig. Quando se deu essa transformação, que incluiu a mudança da cozinha, uma wine library e a Mesa do Chef, o restaurante já tinha alcançado feitos de epopeia.

Tudo começou no final dos anos 80 do século XX, quando os alemães Reinfried e Anneliese Pohl, que costumavam passar férias no Algarve, souberam de uma propriedade à venda. Só havia parte da estrutura do atual Oasis Parc – uma pequena 'aldeia mourisca' com suítes ideais para famílias - e o terreno cimeiro à falésia. Avançam com a compra e abriram o Vila Vita Parc em 1992, com o Oasis Parc e o Clubhouse. Depois vieram o edifício principal do hotel e a Residence. O Ocean ainda não existia, somente os restaurantes Bela Vita, Aladin, Whale e Atlântico, e um café bar na Residence. O resort tornou-se membro da “The Leading Hotels of the World”, em 1998 abriu a cave de vinhos (cerca de 1600 referências) e em 1999 o Vila Vita Spa.

Kurt Gillig e o chef Hans Neuner
Vasco Célio

A visão de Kurt Gillig

Kurt Gillig entrou na empresa no ano 2000 como chef executivo. Liderou o F&B, a Divisão de Alojamentos e Serviços VIP, chegou a diretor do hotel em 2010 e depois a diretor-geral. A sua sensibilidade e base gastronómica, que já vinha do país de origem, a Áustria, onde trabalhara em restaurantes com estrelas Michelin, foram vitais para o sucesso do projeto. Quando começou a trabalhar como chef executivo, eram poucos os restaurantes estrelados em Portugal, e só o Vila Joya alcançara duas estrelas. Impressionava-o a qualidade dos produtos, mas achava que Portugal não era reconhecido como destino de valor. Ainda assim, quando vinham ao Algarve e ao Vila Vita, as pessoas encontravam “algo que não estavam à espera”, havia “espaço e beleza” neste destino. Gillig apaixonou-se pelo país e o seu bem receber genuíno, desinteressado. Tinha certeza do “potencial” existente e começou a pensar na forma de o usar no resort para “construir relações e despertar curiosidade nos clientes, e ao mesmo tempo ajudar Portugal a posicionar-se no mapa”. De certa forma, mantém o intento: “Há tantos produtores e produtos portugueses, e gentileza nos portugueses, mas não colocam o foco neles. Quando vais a França, dizem La Grande Nation, vais a Itália e dizem que têm o melhor presunto e pizza do mundo. Quando vêm a Portugal, dizem que fazem bom vinho, mas o vinho do Porto, por exemplo, é único no mundo, bem como os mariscos e a frescura dos produtos”.

A mudança ambicionada por Gillig estendia-se à culinária: “Há 20 anos, falava com o diretor geral e ele dizia que a melhor comida que se podia comer em Portugal era pargo à transmontana, numa grande porção, ou então lavagante ou lagosta. Era a identificação one to one com a ideia de boa comida. Então, alguém começa a dizer: vamos fazer uma versão mais pequena, com um ponto de cozedura e ingredientes diferentes e combinamos com ervas. É um processo que descobrimos: não só o Vila Vita, o Hans ou o Ocean, nos últimos 20 anos houve uma melhoria geral e de conhecimento no país. É engraçado porque quando viajava pelo mundo encontrava sempre portugueses em todos os melhores restaurantes onde comia. O interesse estava lá, mas naquele tempo não se encontrava este tipo de gastronomia. O renascimento gastronómico surge com os jovens chefs, que trouxeram uma mudança de mentalidade”.

Restaurante Ocean
Shaun Fisher

Um novo restaurante

No Vila Vita Parc, a transformação começa no discreto café bar da Residence, que tinha uma “vista maravilhosa”, mas que escapava aos olhares da maioria. Nos primeiros dois verões funcionou ali um restaurante pop-up com jovens chefs alemães de restaurantes com estrelas. “Precisávamos de um restaurante Michelin. Os clientes iriam gostar e esperavam-no de um hotel de 5 estrelas líder”, sabia Gillig. Em 2006, reúne-se com os fundadores, que o questionam sobre a estratégia. “Eu disse, Dr. Pohl, se me der algum dinheiro adiantado, construiremos uma nova cozinha, contratamos um chef e prometo-lhe que seremos um dos melhores restaurantes de Portugal. Ele disse, soa-me bem, vamos a isso!”, recorda o gerente. Gorada uma negociação, dão a Gillig o contacto de Hans Neuner. No primeiro telefonema, não abordaram o salário, só a visão e o conceito. Hans aceitou o convite sem ver o local ou o restaurante. “Ele nunca tinha estado aqui e eu nunca o tinha visto”, ri-se Gillig. Hans começou em maio e o Ocean abriu a 1 de junho de 2007.

Nascido no seio de uma família de cozinheiros, desde miúdo que Hans viajava com os pais, provava sabores diferentes e conhecia “restaurantes de topo”. “Diziam-me: se quiseres ser um chef, poderás viajar de graça. Então pensei: quero ser um chef, ver o mundo e fazê-lo o mais possível sem despesas (risos): combinar o trabalho com as viagens e o amor era a mistura perfeita”, recorda Hans, que trabalhou em espaços de referência e teve como mentor inicial Karlheinz Hauser, na Alemanha. Com ele aprendeu “muito sobre organização”, sobre como gerir uma cozinha e cozinhar, “crescer como pessoa e manter junta uma equipa”.

Além do clima, o que o fez aceitar o emprego no Ocean foi sobretudo a vista e a “ótima conexão” com Gillig na primeira conversa. Apesar das limitações de orçamento, que forçavam a avançar devagar, sentiu ambição e “um bom feeling”. Para a cozinha, Gillig também não queria um copy paste já consagrado, mas alguém que ajudasse a criar o restaurante e lhe desse “a sua identidade”. No primeiro ano, levava Hans a locais mais simples para saborear feijoada, cabidela ou frango piri-piri, não o queria influenciar “com pratos que outros [Michelin] criavam e não eram Portugal, ou seja, autênticos”. “Agora ele faz o que quiser” (risos).

Carabineiro
Vasco Célio

Sucesso quase imediato

Hans comparava o espaço inicial do Ocean a “um restaurante clássico do final dos anos 80 ou início dos 90 na Alemanha e Áustria”. Não planeava, de todo, ficar até hoje... Nelson Marreiros, gerentedo Ocean, lembra-se do primeiro desenho: “Tinha três áreas: a sala principal era um pouco mais clássica, com a lareira, alguns barcos e patos na decoração, carpete e cortinados de muitas cores; uma varanda com cinco mesas onde toda a gente se queria sentar; e na atual zona da Mesa do Chef, havia uma área onde podíamos pôr uma mesa privada até dez pessoas ou quatro mesas”. Mesmo assim, para a Michelin “era a comida que importava”, acreditava Neuner. A verdade é que o Ocean conquistou, meteoricamente, a primeira estrela Michelin no guia de 2009 e a segunda em 2011. Para quem, como Hans, trabalhara noutros restaurantes estrelados, “foi bastante fácil” atingir a primeira: “Aprende-se a forma de cozinhar, que sabores são os melhores para isso. Transformei um pouco pratos que cozinhei noutros restaurantes e sabia que a combinação de sabores podia conquistar uma estrela rapidamente. Quando tivemos a segunda, o Gillig chorou, não podia acreditar. Vieram também as pessoas da Vila Joya e fizemos uma festa. A terceira seria bom para a equipa e a empresa. Não me levanto de manhã a dizer que me vou enforcar se não a conseguir, tentamos ser melhores no dia seguinte, mas ainda não a ter é um pouco frustrante para mim, e é doloroso voltar e dizer à minha equipa que teremos de esperar outro ano. Provavelmente acontecerá, mais cedo ou mais tarde”, confia. “A terceira estrela é um sonho, uma visão e algo em que acreditamos fortemente. Fazemos o melhor todos os dias para o conseguir”, comenta Gillig.

Hans Neuner realça que conseguiram duas estrelas com um restaurante de ambiente clássico, uma “cozinha muito pequena e poucos cozinheiros”. Muito diferente do restaurante “amazing” atual. No primeiro ano, abriram já em temporada e sem tempo para pesquisar produtos. O pescado e o marisco frescos eram da região, mas coisas como vegetais e manteigas “vinham de França”. Até à segunda estrela, “não havia tempo para ir ao mercado”, mas a partir daí começa a aumentar a busca, a incorporar “mais produtos portugueses, a saber onde crescem e quem é o produtor”. Gillig, por sua vez, defendia um sistema em que os fornecedores pudessem abastecer diretamente as cozinhas, com informação sobre a origem dos produtos. Impunha-se, também, uma produção e entrega regular de produtos “sempre com a mesma qualidade”. No fundo, esses processos e o mercado para este nível de cozinha levaram “tempo” a desenvolver.

Ainda em 2011, o Ocean conquistou o primeiro Garfo de Platina pelo Guia Boa Cama Boa Mesa. No ano seguinte, Hans vence o prémio de Chef do Ano pela mesma publicação. Em 2019, o Ocean volta a ganhar um Garfo de Platina e Hans recebe pela segunda vez, de forma inédita, a distinção de Chef do Ano. “Significa muito, ainda estou muito orgulhoso. Adorei e até disse que fizeram o prémio especialmente para mim (gargalhada). Podem dizer o que quiserem, mas o Guia Boa Cama Boa Mesa é o único em Portugal que vai a todos os restaurantes. E não só deste tipo, o que é muito bom. Para mim é o guia top de Portugal, sem discussão”, comenta o chef, que ficou também “muito contente” quando Noélia Jerónimo foi Chef do Ano. Em 2023, tanto o Ocean como o Vila Vita Parc – aqui na vertente de alojamento - foram contemplados com uma Platina. “O que a vossa publicação fez e está a fazer apoiando a hotelaria e a restauração portuguesas é realmente fora do comum. É uma honra fazermos parte disso. Sem o vosso trabalho e a plataforma que criaram nos últimos anos, talvez o país ainda não estivesse onde está”, considera Kurt Gillig.

Decoração do restaurante remete para o mar
Shaun Fisher

Exigência redobrada

Com o sucesso aumentou o grau de exigência. Reforçaram a equipa e aperfeiçoaram processos. Obrigava a dialogar mais com a cozinha, a provar os pratos para “falar mais aprofundadamente” sobre o menu, e a limar a operação. Durante o dia há muito trabalho invisível na preparação do jantar. O staff passa toalhas a ferro, volta a verificar todos os copos, é preciso polir os pratos e fazer uma limpeza geral, incluindo dos menus. No briefing antes do serviço, todos sabem “tudo o que se vai servir” a cada pessoa. Definem os talheres e o vinho para cada prato e qual o copo em que vai ser servido. Abordam necessidades específicas dos clientes e a cozinha é informada sobre eventuais alergias.

Por norma, uma refeição no Ocean demora entre 3h a 3h30. Ao todo, podem servir até 400 pratos por noite e, portanto, importa ter atenção aos tempos, sequência de serviço e controlar os pedidos à cozinha. Há uma pessoa encarregue exclusivamente desses pedidos e da coordenação com o serviço de sala: “Saber se já tem o vinho ou o talher, se está tudo pronto...”. Nelson Marreiros refere que é importante ter a “divisão das tarefas bem feita e as pessoas certas a fazer cada tarefa, ter consistência ao longo de toda a refeição e estar sempre em cima do serviço”. A este nível, a que se presta atenção? “Ao conforto do cliente, até com o ar condicionado, ver se há migalhas ou alguém pingou ou sujou a mesa: podemos colocar um toalhete com as medidas da mesa para que a pessoa continue confortável. Devemos atender a que os copos de água nunca estejam vazios e às trocas de guardanapos. O cliente não deve ficar muito tempo com o prato à frente quando termina, devemos colocar logo os talheres corretos, corretamente, e o copo certo para o próximo vinho. Temos de ver se há uma mesa a demorar mais tempo: tentamos ser um pouco descontraídos, não demasiado formais, mas cumprindo as regras e fazendo as coisas como deve ser. É muito importante perceber se o cliente está disposto a ouvir a história toda ou se prefere não ser demasiado incomodado, e é bom perceber se é um jantar de lazer, romântico, uma ocasião especial ou mais de negócios”, elucida.

A atarefada cozinha do restaurante Ocean

Explorar Portugal e criar

Hoje, Hans Neuner tem uma forma de pensar os produtos “completamente diferente” e sabe “mesmo de onde eles vêm”. No Ocean, aprendeu imenso sobre o mar, os “inacreditáveis” mariscos e os peixes da nossa costa. O salmonete e o robalo são alguns dos preferidos e tudo o que se consegue na estação “é amazing”. Ver os pescadores trazerem o peixe, acompanhar a faina ou assistir à apanha dos percebes, são injeções de saber. “Na Alemanha, comprava-se um quilo de percebes de algum lado sem saber qual é a altura certa, ao que sabem quando se tiram da rocha e se cozinham de imediato, ou se se comem crus. Aqui tens um conhecimento mais profundo, falas com os pescadores, cujas famílias o fazem há gerações”, ilustra.

Os próprios membros da sua equipa abriam portas ao conhecimento. Neuner recorda uma ida a Chaves, a casa dos pais do chef Vítor Adão, que passou pelo Ocean e abriu o restaurante Plano, em Lisboa. Divertiu-se “imenso” com o seu pai e a mãe cozinhou cabidela. “Depois, vemos o twist que podemos fazer no nosso restaurante”, explica o chef austríaco. Aplicava o mesmo raciocínio em recriações de outros pratos. Fez xerém “de todas as formas possíveis” e adaptou cozidos, pastéis e cataplanas. “Quando vim, ninguém tinha uma cataplana num menu de alta cozinha. Quando provo a cataplana, o molho é tão poderoso e profundo que é 100% um sabor Michelin. Só temos de cozinhar de forma diferente, isto é, cozinhamos a cataplana e usamos só o molho para o nosso prato, porque o sabor está lá. Isto para fazer algo mais apelativo visualmente”, desenvolve. No Ocean, recorre a muitos sabores nacionais, tornando-os mais leves “ou sem ovo, com apresentação mais moderna”. Na reta final de 2022, o chef testava uma versão com codorniz do clássico frango piri-piri. Tinha de aliar simplicidade a uma experiência de sabor capaz de impressionar o público mundial. “É um prato muito simples e se formos muito loucos já não sabe a frango piri-piri. Aquilo é gordura, um pouco de acidez, sal, pimenta, grelha, fumo e o crocante da pele...”.

Quando o Ocean fechou por causa da pandemia, em 2020, iniciam-se as viagens que levaram Hans a encontrar coisas novas. Ao lado do chef de pastelaria, Márcio Baltazar, compraram tendas, sacos cama, e fizeram-se à estrada. Logo no início, levaram “uma hora” a desmontar a tenda, recorda Márcio. Hans adorou contactar com produtores de queijo, vegetais, estrear-se num campo de arroz e fazer uma versão fine dining do típico arroz de tomate com choco frito. Ou ainda conhecer a elaboração dos cuscos, feitos pela mãe dos irmãos Geadas, em Bragança. Márcio também se inspirou: “Adorei Trás-os-Montes, é brutal, as pessoas são espetaculares. Provámos tudo o que é típico, a alheira, que não tem nada a ver com a que comemos no resto do país, os pastéis de Chaves, as castanhas..”. Dessa viagem resultou o menu “À Descoberta de Portugal”, inaugurando uma série dedicada a Portugal e às rotas traçadas pelos portugueses no passado. Neuner absorveu a “energia” das pessoas. “Não é que tenha um produto que nunca tenhas visto, é a forma como trata dele, o seu orgulho e o trabalho que tem para o fazer perfeito. Há muita paixão nisso e é inspirador quando vês pessoas que dedicam a vida a produzir batatas, por exemplo”.

Apresentação criativa dos pratos

As ilhas e a rota até à Índia

Em 2021 surgiu o menu “Rota das Ilhas” portuguesas ou com ligação histórica ao país. O chef reteve o sabor das cracas açorianas, “o melhor crustáceo que se pode ter”, o ananás, os vegetais, o “ótimo queijo” e a confeção da alcatra: “Usamos sobretudo o molho, cozinhado de forma tradicional, e pomos o resto para ficar mais limpo e não tão gorduroso ou pesado. Os portugueses só ficam impressionados se souber ao que a mãe cozinhava”. Márcio realça o Chocolate da Roça Diogo Vaz, que “tinha muita história” na ligação a São Tomé e Príncipe. A Queijada Dona Amélia serviu numa versão “mais refrescante, não tão doce e pesada”.

“Na Rota dos Descobrimentos” foi o menu de 2022, inspirado no caminho marítimo para a Índia. Um dos momentos mais sublimes aconteceu a propósito do 'desvio' histórico de Bartolomeu Dias, quando se perdeu após dobrar o então Cabo das Tormentas, até avistar icebergues. À mesa, foi representado pela excelente “Ostra da Ria Formosa” curada em escabeche de pepino (sobre finas fatias do mesmo), com o refrescante endro e a textura dissonante do pó de ervilha: um prato “muito leve e muito fresco” e para o qual foi criado um bloco de gelo com água de bivalves, granizado à frente do cliente com uma máquina. Servia-se história, sabor e “um pouco de show”, comenta Nuno Marreiros. Há várias formas de confecionar a “Matapa”, mas a equipa do Ocean inspirou-se na dona Sónia, uma das várias moçambicanas cuja força e labuta os impressionou. Neuner utilizou coco, amendoim e serviu um filet de linguado cozinhado em sous vide a baixa temperatura, com berbigão, búzios, puré de matapa e ervas da costa, molho de leite de coco, amendoim e peixe. “Em Moçambique, não têm a variedade que há num mercado da Europa, só o que eles próprios cultivam em pequenas quintas, mas os seus produtos são muito mais intensos, crescem sem modificações industriais e em geral sabem maravilhosamente”, verificou o chef.

O guardanapo foi depois substituído por uma colorida capulana moçambicana. É que os cozinhados da Dona Sara inspiraram o marcante “Camarão Tigre Selvagem de Moçambique”. O interior da loiça foi revestido com t-shirts compradas num mercado local e o camarão serviu com pasta de tomate e beringela, bisque à base de camarão tigre, carabineiro e molho XO. Como sublinhava o sommelier, Ricardo Rodrigues, era um dos pratos “mais poderosos do menu em termos de especiarias e intensidade de sabor, muito excêntrico e com texturas diferentes”, ficando “excecional pela parte mais picante do molho”. Era também “muito desafiante” e obrigou a “pensar bastante” o pairing. Nessa noite, optou pelo vinho “Ururabo” de Nieepoort, Gouveio de 2018, com “boa acidez e estrutura, mas muito fresco e mineral” quando na companhia do prato. “Este ano foi bastante desafiante, com ingredientes completamente desconhecidos e coisas novas, foi necessário provar o menu duas vezes para ter tudo alinhado”, comenta Ricardo Rodrigues.

A intrigante estatueta da “Mamã África” era uma homenagem de Márcio Baltazar às mães e mulheres moçambicanas. “A imagem feminina tem muita força em Moçambique. Este país já foi o maior produtor de caju do mundo e, quando vamos à fábrica, vemos só mulheres sentadas a descascar, semente a semente. A pessoa começa por comer a parte fresca, em cima, e depois tem uma mousse de caju, que é a parte do cabelo”, descrevia. A primeira sobremesa de Márcio no Ocean, “Pedras de Monchique”, foi um dos que o marcou e, no ano passado, reinterpretou a caldeirada de peixe da Dona Graciete, servindo uma “Caldeirada de banana, cardamomo e bolo de Sura”. A base é a mesma da versão salgada, mas utilizou banana, vinagres, maracujá, o molho da caldeirada e, à parte, uma massa a imitar o peixe frito. Assente na procura “de saberes e sabores da cozinha brasileira”, o atual menu, “Memórias do Brasil” (12 momentos por €225, possível pairing vínico por €155) resulta da viagem que a equipa fez no início de 2023. A “Mandioca” com caviar imperial e enguia fumada, a “Moqueca” com raia, camarão vermelho e ovas de truta”, o “Tucupi”, com o peixe do dia, castanha do Pará e aipo, bem como a “Picanha” e o “Chocolate macaé” são alguns destaques da nova degustação. Pode reservar uma versão vegetariana com 48h de antecedência.

Vista para o mar na sala de refeições
Vasco Célio

Constelações

Kurt Gillig lembra-se do primeiro prato de Hans que o impressionou, um bife de veado com puré, cozinhado “de forma perfeita, com os sabores perfeitos”. Encaixar-se-ia no Ocean atual? “Não, mas na altura era a sua maneira de cozinhar. Acredito tão fortemente no Hans porque vi o seu talento nesse momento. O prato não refletia nada de Portugal, mas havia perfeição na técnica, ponto de cozedura, sabores, e via-se a paixão dele a preparar molhos”, notou o gerente do Vila Vita. A admiração por Hans é partilhada pela equipa... Aos olhos do sub-chef Thomas Pence, que encontramos atarefado na cozinha, tal como Márcio Soares, Hans é “um grande mentor, com enorme conhecimento e é sempre um grande prazer trabalhar com ele”. Já na memória de Nelson Marreiros ficou um “fantástico” prato com pintada, que levava mousse de fígado entre a pele e a carne, acompanhando com ligeiro jus de pintada, mistura de cogumelos selvagens e trufas.

A gastronomia é muito relevante neste resort, que depois da Rota das Estrelas e da Fine Wines & Food Fair, por onde já passaram dezenas de chefs de restaurantes com estrelas Michelin, celebrou os 30 anos em 2022. Ao longo de 30 semanas, realizou 30 eventos excecionais, da gastronomia à arte e ao bem-estar. A responsável de comunicação do Vila Vita Parc, Rita Gonçalves, diz que a iniciativa “espelha a vontade do resort ser uma plataforma para mostrar o que há de bom na região, no país” e até no estrangeiro. Promoveram-se jantares de cozinha asiática, de encontro entre as cozinhas portuguesa e francesa, um evento com chefs relevantes no panorama gastronómico algarvio - não necessariamente estrelados - um jantar - Reach the Stars - com todos os chefs com restaurantes de duas estrelas Michelin em Portugal e uma edição mundial de Reach the Stars em que participaram dez chefs com três estrelas Michelin. Ao todo, acolheram-se mais de 50 estrelas Michelin, uma constelação que posiciona este resort noutro patamar de alcance. E, por conseguinte, o próprio país... “Para Portugal ter reconhecimento no estrangeiro, precisamos de estar todos juntos e trabalhar em conjunto”, defende Gillig.

Acesso direto à praia dos Beijinhos
Vasco Célio

Paraíso no Algarve

O Ocean (Vila Vita Parc, Rua Anneliese Pohl, Alporchinhos, Porches, Tel. 282310100) é apenas um dos 11 restaurantes do Vila Vita Parc. Além do seu fine dining e dos outlets iniciais, há ainda o japonês Mizu Teppanyaki, a comida tradicional portuguesa do Adega, o Biergarten e três no Armação Beach Club: o Arte Náutica, Nana on the Beach e o Praia Dourada, este com opções mais leves e ideal para os sunsets. No Vila Vita Parc, o descanso é ponto assente e há 22 hectares para descobrir, com lagos, grandes jardins e seis piscinas beneficiando de um sistema de dessalinização da água. O pequeno-almoço é diversificado e o tempo passa devagar... Prazeres como um duche ao ar livre no terraço do alojamento, escutar os pássaros, a água a correr ou vislumbrar patinhos na caminhada, complementam os banhos refrescantes, os cocktails nos bares e o conforto das day-beds, cabanas e das espreguiçadeiras à sombra das árvores. O Vila Vita Spa by Sisley Paris dispõe de 14 salas de tratamentos: o Golden Quartz inclui cristais de quartzo aquecidos, pindas e o som de taças tibetanas. O yoga suspenso e o programa de Hypoxi, “único na Península Ibérica”, são outros estímulos.

Visível da falésia, o mar é cruzado lentamente pelas embarcações... Desça e aceda à praia, sem hora de regresso, e aproveite os quatro iates para passear na costa, a tempo do pôr do sol. Pode ser possível conhecer grutas menos óbvias com um barco mais pequeno, uma das imensas mordomias possíveis neste paraíso com 203 unidades de alojamento. Desde agosto de 2022 que o Red Chalet reforça o portefólio da Vila Vita Collection, em Armação de Pêra. A essas villas juntam-se mais quatro dentro do resort, como a idílica Villa Trevo. O hóspede pode tomar o pequeno-almoço na villa, “a professora de yoga pode ir dar uma aula no jardim, o chef pode fazer um barbecue para receberem amigos e dá para organizar sunsets com os bartenders, é desejar e o Vila Vita faz acontecer”, ilustra Rita Gonçalves. Todas estas villas têm piscina privada e serviço de mordomo 24 horas, “para tudo o que for preciso”.

Além de desejos mais comuns, como adaptar as cabanas para pedidos de casamento ou jantares de aniversário, o resort já conseguiu entregar um cheesecake específico vindo de Nova Iorque para satisfazer uns hóspedes. E também acomodar sem problemas a princesa de Marrocos, que chegou com “uma série de camiões” com a equipa de cozinheiros, pessoal médico, damas de companhia, responsáveis da embaixada, malas e vestidos. Há uns anos houve também “uma situação muito engraçada” com a esposa do ministro da Defesa da Arábia Saudita, que era irmão do rei, revela Kurt Gillig: “Veio com seis médicos, três netos e um staff de 100 pessoas. E ao mesmo tempo tínhamos o presidente da República, Jorge Sampaio. Eram os seguranças dele e dela, do mesmo departamento de polícia, a pensarem quem ia primeiro...” (risos). Foi ainda considerado um pedido especial de um elefante para um casamento indiano, mas no final os noivos tiveram de se contentar com um cavalo branco.

Apesar da sua dimensão, o Vila Vita Parc também se revela nos detalhes, a começar pelos trevos de quatro folhas discretamente espalhados pelo hotel, como os que encontrámos gravados no pavimento, junto a uma fonte. É o símbolo da família proprietária: na fundação eram quatro [os pais, já falecidos, e os dois filhos, que continuaram o negócio]. Repare ainda nos azulejos (e padrões de azulejos), na cerâmica de Porches, na calçada portuguesa, amenities Claus Porto, lençóis Sampedro e peças de loiça Costa Nova. Sinalizam “a essência portuguesa”, o que não invalida que, de repente, se misturem com papéis de parede Lacroix. Acreditamos, porém, que a maior valia do resort será o fator humano, ou “serviço personalizado” segundo Kurt Gillig: “Gostamos de ler os clientes e temos membros de equipa geniais. A sua confiança, a identificação com a propriedade e a família Vila Vita, mostra ao cliente uma perspetiva diferente. Não sabemos qual é a expectativa de luxo, mas abordamos as pessoas com simpatia e um sorriso franco. E o sorriso, a autenticidade e a atenção, o ouvir o seu nome, isso é impagável”.

50 ANOS RECHEIO

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

Acompanhe o Boa Cama Boa Mesa no Facebook, no Instagram e no Twitter!