Numa tarde tranquila, em maio de 2017, telefonam para o restaurante Solar dos Nunes, em Lisboa. Era da parte de Nuno Gomes, então diretor-geral do Centro de Formação do Benfica. Queriam reservar uma mesa para 12 pessoas em sala privada, mais duas para seguranças... É que na companhia de Nuno Gomes vinha Madonna, um ícone planetário. Ela, os filhos e mais algumas pessoas. Apesar de “estupefactos”, os funcionários já estavam “habituados a lidar” com visitas de gabarito mundial. “Estas pessoas gostam de discrição, de estar à vontade. São iguais a nós, só querem um cantinho de bem-estar, que não os saturem. Tentamos protegê-los o mais possível”, comenta Susana Nunes, que gere o restaurante com o irmão, José António Nunes.
Nessa época corriam rumores de que a rainha da pop, que editou êxitos estrondosos como “Vogue”, “La Isla Bonita”, “Like a Prayer”, “Express Yourself” ou “Hung Up”, ponderava mudar-se para Portugal. O encontro com Nuno Gomes dever-se-ia aos treinos de um dos filhos, David Banda, no centro de estágio do Benfica “com a equipa de sub-12”, escrevia a Caras. A estrela acabou mesmo por viver em Portugal um período. E a vivência inspirou, em parte, a criação do disco “Madame X”, onde até versou em português.
A refeição correu “muitíssimo bem” e os convivas “riram e conversaram”. À mesa foram parar as habituais entradas do restaurante, um fartote de prazeres que incluiu “Presunto Ibérico 5 Jotas” (€18), “Queijo de Azeitão” (€7,50) e queijo de cabra, saladas de pimentos à Andaluzia, de polvo e de cogumelos, azeitonas de Serpa, pãozinho, tostas e um pouco de broa com bacon, “Ovos mexidos com farinheira” (€7,50) - pode pedir farinheira grelhada se preferir e também. Nos pratos principais, além dos “Lombinhos de porco preto” grelhados, o destaque foi para um pedido específico da cantora: “Bacalhau à Brás”. “Já vinha com o prato sugerido. Quem lhe falou no bacalhau não sei, mas ela gostou muito”, refere Susana que, sabendo quem tinha à mesa, mandou fazer de propósito o gabado “Arroz-doce” do Solar dos Nunes. “Ela fez questão de comer o arroz da travessa, do barro onde foi empratado, estava quente. E dizia, meu Deus, o que é isto? O que eu estou a comer? É dos deuses!”, recorda a anfitriã.
Só quando a artista se levanta para sair é que a maioria dos outros comensais se apercebe da sua presença: “É a Madonna, a Madonna... As pessoas começaram todas a levantar as cabeças e a olhar, porque não é normal cruzarmo-nos em qualquer sítio com a Madonna. Ela estava desmaquilhada, à vontade. Acenou a toda a gente, que ficou perplexa, e saiu. Foi super querida, super simpática, e para nós foi um prestígio tê-la nesta casa. É um ícone de uma vida inteira. Ter a Madonna na minha casa enche-me de orgulho”, congratula-se Susana Nunes. A cantora ainda deixou uma dedicatória numa foto sua, que alguém foi imprimir: “Thank you for de delicious meal, with love, Madonna”, seguida de um coração e a data.
Julio Iglesias e Roger Waters
Noutra ocasião, o staff aceitou ficar até de madrugada para servir mais uma estrela mistério, que se revelou ser Julio Iglesias. Veio “muito cansado” a seguir a um concerto, com “um cachecol para proteger a voz e um sobretudo”, e foi atendido pelas 3h00. Comeu lavagante e sapateira e, quando Susana lhe pede para assinar a foto, declina: “Adorei tudo, e teres-me aberto a porta da tua casa a esta hora, mas não assino uma foto comigo tão velho”. Foram buscar ao carro outra, em que estava mais jovem, e assinou. Numa noite fria e chuvosa de inverno, com a casa “completamente cheia”, sentam-se cinco estrangeiros na mesa 9, encostada à janela. Um deles “nunca tirou da cabeça” o chapéu de cowboy. Susana atendia outras mesas e foi vendo que o colega fazia um bom trabalho na 9, decantando o vinho num decanter alto. Por vezes, o senhor do chapéu levantava o braço e fazia-lhe com o dedo sinal de ok, “como que a dizer ótimo!” Ela respondia de igual forma e assim foram comunicando. No fim, o grupo entrou na carrinha preta à porta, de vidros fumados, ficando alguém a pagar a conta. “A senhora não faz ideia de quem se sentou na mesa, de chapéu”. “Não faço não”, responde Susana. “Era o Roger Waters, dos Pink Floyd...”. “Ai por amor de Deus, deixe-me pelo menos tirar uma fotografia ou ter uma assinatura! - Agora não, a senhora teve-o três horas sentado numa mesa e não fez nada. Agora é tarde, está dentro do carro, já não dá”, recorda Susana, que ainda assim ficou contente por Roger sair satisfeito com o jantar.
Axl Rose, vocalista dos Guns'n'Roses, “não disse nada nem foi caloroso ou amistoso”, ao contrário da “simpática e querida” Ivete Sangalo, que já comeu de tudo neste restaurante. Do Brasil vieram ainda Cláudia Raia, Gilberto Gil e Fernando Henrique Cardoso. Os U2 reservaram para depois de um concerto, mas acabaram por ir para o hotel vencidos pelo cansaço. Jane Fonda veio com o agente e não quis “ninguém à volta” da sua mesa. “Um dia, o meu pai disse que o Solar é a sala grande da minha casa, e é verdade. Se pensarmos bem, a nossa sala de estar recebe os nossos amigos, quem gostamos de conhecer. Temos recebido muitos amigos, figuras públicas que se tornam amigos, pessoas a vir pelo trabalho, negócios e para desfrutar”, comenta Susana Nunes.
Soares e os” pasteizinhos de bacalhau”
Olhando para a lista de figuras conhecidas que por aqui passam, a ideia da sala de estar faz bastante sentido. Fernando Mendes “é filho da casa” e amigo há décadas. “Diz que isto é a cantina dele e, como mora muito próximo daqui, vem do teatro e das gravações e pergunta o que ainda pode comer, ou então leva para casa”. Mário Soares passava muitas vezes no Solar e “gostava de comida bem portuguesa, como uns pezinhos de coentrada, uns peixinhos-da-horta, pasteizinhos de bacalhau, arrozinho de tomate com carapauzinhos fritos”. Uma vez, sentado à mesa, disse que lhe apetecia uns pasteizinhos de bacalhau. O pai de Susana tratou disso, serviu-os com arroz de tomate e “ele deliciou-se”. Cavaco Silva, Passos Coelho e Miguel Relvas também conhecem o primor desta cozinha.
Do mundo do futebol são muitos os craques a dar um ar da sua graça. Francisco Marques, responsável pelo serviço de valet parking, que o diga. Já estacionou os automóveis de vários, como Ricardo Horta, alguns jogadores do PSG, Ricardo Quaresma e Bruno Fernandes, que é um assíduo cliente quando está em Portugal. Gosta de comer tornedó, arroz-doce e é uma “pessoa muito simples e muito querida”, considera Susana. Maniche, Figo, Sérgio Conceição, Cédric e Calado são outros clientes da 'bola'. Jorge Jesus aprecia “cabeça de garoupa com feijão-verde e batata, tudo cozido, não sai muito da linha e bebe um Três Bagos Sauvignon Blanc”. Eusébio foi aqui servido muitas vezes.
Décadas de história
Este prestígio não se consegue sem esforço. Antes de fundarem o Solar dos Nunes, em 1988, os pais da atual gerência, José Nunes e Ana Luísa Nunes, tinham um pequeno snack bar na mesma rua, onde vendiam snacks, petiscos e pratos do dia. Até ao dia em que Ana Luísa desafiou o marido a comprar esta casa, que tinha sido uma mercearia e o café Adamastor, e estava à venda. Ela é natural de Serpa e tem “mão forte para a cozinha”. Ele era de Viseu, de onde trouxe o apreço pela força dos sabores das Beiras, e onde se inspirou para nomear o novo restaurante, considerando a quantidade de solares antigos nessa região. No início havia duas salas, lareira na parte de cima e já os azulejos e as traves de madeira. O balcão era de inox, ainda sem os presuntos à vista nem a barra que os pendura. Também ainda não havia a garrafeira nem o aquário, que chegou há cerca de oito anos, permitindo servir alguns mariscos. A banca de peixe fresco, desde sempre no Solar, foi ganhando expressão. “O chão era uma tijoleira muito feia e ainda trabalhámos com cadeiras, aparadores de inox e um balcão muito feios. Contratámos uma equipa que, num sábado à noite, esperou que os clientes saíssem para retirar tudo de cá de dentro, partir aquele chão e substituir por calçada portuguesa, que é assim mesmo, irregular”, conta Susana.
As toalhas e guardanapos de pano vieram em poucos meses, e também os coxins para as cadeiras. Com o passar dos anos, o espaço foi sofrendo algumas alterações e a decoração crescendo, sempre com a “preocupação com o bem-estar do cliente”. Há cerca de 15 anos fez-se a obra na zona dos balneários, abrindo uma nova sala de 20 lugares – onde comeu Madonna -, e a capacidade subiu para 80. Fizeram-se mais duas casas de banho novas e a garrafeira por baixo do restaurante. As paredes enchem-se, hoje, de fotografias autografadas, recortes de jornal e distinções. “Contam a história desta casa e falam por si”, realça a anfitriã. Veem-se pratos e travessas com cães e os candeeiros originais, limpos com óleo de bananeira. O ambiente é tradicional, caloroso, acolhedor, à medida do prazer à mesa.
União familiar
Jeferson Jesus Almeida, conhecido por Jardel, é a personificação do serviço atento e competente desta simpática casa onde, apesar da frequência de famosos, todos “são tratados por igual”. “Temos de dar o nosso melhor e atender o cliente como se fôssemos nós sentados à mesa”, refere. Acompanhamos Jardel no ritual diário do corte do presunto, tarefa que aprendeu desde que aqui chegou, há mais de sete anos, e que cumpre com precisão, espevitando o apetite. Porventura, muitos desconhecerão que, no início, funcionavam dois conceitos neste espaço: um restaurante e o serviço de pastelaria (de manhã e a meio da tarde) que aqui funcionava antes da vinda dos Nunes. Até ao dia em que José Nunes decide acabar com a pastelaria e assumir o Solar dos Nunes apenas como restaurante.
Foi contratada uma cozinheira, mas “correu muito mal” porque ela “não teve mão e não queria ter aquele trabalho todo”. Dois dias depois, José pede ajuda à esposa e Ana Luísa, que era costureira, “deixa as linhas, agulhas e dedais para depois”. Assumiu a cozinha e ficou lá muitos anos. “A carta que temos ainda hoje é toda dela. Ela é que a fez a carta. Tinha os princípios todos da cozinha. Estes sabores alentejanos que damos a provar, é tudo da mão dela. Ainda hoje vem a Lisboa e quer provar tudo, ver se tem os toques, os temperos, os sabores. Esta cozinha e história são dela”, contextualiza a filha. José Nunes, por sua vez, tratava dos clientes, compras, fornecedores e da vertente que respeita aos empregados de mesa.
Ana e José contaram com a ajuda dos filhos, desde logo de José António Nunes, que “já era um homenzinho”. Susana Nunes acompanhava e ajudava como podia, conciliando com os estudos, e mais tarde com o trabalho num gabinete de contabilidade. “Vinha aos fins de semana, porque era sempre filas e filas à porta. Ajudei em tudo o que podia: se era preciso descascar uma saca de batatas, descascava, depenar perdizes, depenava, mas sempre em back office, até que um dia um empregado saiu e o meu pai estava com falta de paciência para mexer em papelada e disse-me para o ajudar a mexer nos papéis, que estava muito cansado de papéis e queria ter todo o tempo para dedicar ao cliente. Eu disse está bem, até hoje”, recorda Susana. Com a morte do pai, em 2012, “toda a gente pensou que a casa não ia resistir”, até porque a idade da mãe ia pesando. Foi então que Susana e José fizeram “o que dois bons irmãos fazem, que é unir-se e seguir, continuar.”. Susana diz que o negócio “está a correr lindamente” e disso é bom indício a rapidez com que as salas enchem.
A caça
No Solar dos Nunes, outra grande preocupação é a “qualidade dos produtos”. Por isso se mantêm os fornecedores há muito tempo, com base em relações de confiança mútua: “Não abandono os que sempre me serviram bem, não mudo de fornecedores por ser mais barato dois cêntimos. São pessoas que, se eu precisar para agora, vêm agora”, afirma Susana. Uma estabilidade importante e que encontrava paralelo no gosto pela comida de substância, inerente às raízes nortenhas e alentejanas dos fundadores.
José Nunes “comia muito bem, adorava comer” e a caça, por exemplo, era um dos fundamentos da cozinha da família. Sugerem-se o “Veado”, o “Javali”, a “Lebre com feijão-branco” (€24), que vem para a mesa num pote de três pés e é servida pelo funcionário com uma concha. Estes potes ainda se põem em lareiras de chão no Alentejo. Aí assam-se castanhas, torra-se pão e aquece-se o café. Tem ainda o “Arroz de lebre à moda da Herdade” (€24) e o “Coelho bravo frito com açorda de coentros à moda do Alentejo” (€19,50). A “Perdiz estufada na cataplana com Arrozinho d'Avó” é uma das melhores sugestões: “É depenada, leva um bom refogado e é estufada em forno lento baixinho”, guarnecendo com batata frita, arroz branco envolvido com ervilhas, pimentos, bacon e ovo, um arroz “de substâncias”. “A minha mãe costuma dizer que as boas comidas fazem-se em lume baixo, para tirar as boas texturas e sabores dos alimentos. As coisas são feitas com tempo, cabeça e aromas. No Alentejo são muito importantes as aromáticas como salsa, hortelã, coentros, poejo e tomilho”, comenta a gerente. O “Pernil de javali à Monteiro Real” (€24) leva uma base em vinho tinto com cebola, alho, louro, cravinho e azeite e a carne fica a cozer em lume brando quatro ou cinco horas, desfazendo-se no momento do serviço. Acompanha com pera caramelizada ou marmelos caramelizados no seu tempo.
O pescado e os doces
Imperdíveis são também a “Açorda de bacalhau à alentejana” (€22), o “Caldo de robalo com poejos à alentejana” (€26,50), um prato “fortíssimo no Alentejo”, mas também o “Caldo de cação” à alentejana ou a permiada “Sopa rica de peixe” (€42, duas pax). Essa sopa é de comer à colher, com a calda feita de origem, e é tão bem guarnecida de cubos de peixe que as pessoas “ficam logo saciadas, é um prato à séria”. A “Posta de bacalhau” tem à volta de 500 gramas, é muito generosa, e os comensais apreciam também “Bacalhau à Lagareiro” e um bacalhau que é desfiado e gratinado com molho Bechamel e um puré, camarões e os espinafres. Resumindo, “uma delícia!”. Ao nível do polvo tem as opções à Lagareiro (€22), “Filetes de polvo com arroz de polvo” e uma “Cataplana de polvo”.
Há muita gente que vem para comer um bom peixe grelhado com legumes cozidos ou salteados e batata cozida. Todos os dias há garoupa e cherne, robalo, peixe-galo, pregado, nem sempre salmonetes e linguado e por vezes vem o imperador. “Depende do que o mar nos traz”, aponta Susana. Há várias vias para se deliciar com a nobreza do lavagante: em folhado (€38), num arroz (€38) que sai a ferver do lume e serve em tacho de pedra, para se manter quente, e ainda como risotto. Em alternativa, pergunte pelos pratos do dia, de bom trato. Pode encontrar, entre outras surpresas, “Jardineira de vitela”, “Favas”, “Pescadinhas de rabo na boca”, “Nacos do lombo com cogumelos no tacho”, “Ervilhas com ovos escalfados”, “Feijoada à transmontana” ou “Pataniscas de bacalhau com arroz de feijão”. Nas sobremesas, considere o “Arroz-doce d'Avó Luísa” (€5), o “Leite-creme” (€6) queimado à frente do cliente, as “Farófias”, o “Fidalgo Real do Convento d'Évora” (€7), a “Sericá com ameixa de Elvas”, “Tarte rainha com amêndoa e ovo”, a “Torta de laranja do Algarve” (€6), a “Encharcada”, “Sopa dourada” e a “Tarte de requeijão com doce de abóbora” (€6), que é de chorar por mais.
O Solar dos Nunes (Rua dos Lusíadas, 68-72, Alcântara, Lisboa, Tel. 213647359) () foi eleito “Restaurante da Europa 2022” pelo Conselho Europeu de Confrarias Enogastronómicas. O prémio foi bem recebido, mas o foco recentrou-se de imediato no que há para fazer, porque “o trabalho é diariamente igual”. Para Susana, esse labor é um prazer e por isso não desliga o 'turbo' após entrar ao serviço. Diz que tem tempo de descansar em casa: “Quando estamos a trabalhar, temos de dar tudo. Vamos continuar a fazer sempre igual, não quero fazer nada diferente. Assim, tenho a certeza que o meu pai, esteja onde estiver, estará orgulhoso do que fizemos. Os nossos pais, Ana Luísa e José Nunes, são sem dúvida as pessoas que puseram isto a andar. E, quando amamos o que fazemos, dificilmente não o fazemos por gosto”.
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso
50 ANOS RECHEIO
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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