É preciso topete

Otelo: uma espécie de Moulinex

Paulo Gaião

Otelo não misturou apenas mulheres, misturou o Copcon com mandados assinados em branco, as instruções de Spínola para ser rígido com a FRELIMO com os abraços a Samora Machel, as queixas da Reforma Agrária com a corrida às caçadeiras contra a GNR, o Campo Pequeno com os fascistas, o regime democrático com as FP 25,  o estado a que isto chegou em 2012 com um novo golpe militar ( como defendeu há um mês),  o 25 de Abril com um clip erótico com Julie Sargent em que a revolução falha... na cama (a não perder no You Tube) e  o querer ser ator na juventude no Actor Studio's de Nova Iorque  com a sua própria vida, política e pessoal.

Tem das melhores testemunhas abonatórias do mundo. Os militares que foram seus inimigos no 25 de Novembro são os melhores amigos. Ramalho Eanes no topo.  E António de Spínola também gostava dele. No fundo, é a mesma situação que leva duas mulheres, Filomena e Dina, a aceitarem a bigamia só para poderem estar com ele. Otelo parece que tem mel.

A vida privada é sagrada mas a bigamia serve para melhor compor o retrato político.        

No PREC estão as suas melhores histórias.  Mas nada melhor que falar o próprio.  

Eis extractos de uma entrevista dada por Otelo Saraiva de Carvalho ao Expresso em 17 Abril de 1999, para assinalar o 25º aniversário do 25 de Abril de 1974.     

 

Dois dias depois do 25 de Abril   

Peguei no carro e, quando descia pela rampa, os fuzileiros mandaram-me parar. Havia ali uma multidão ululante, profundamente antifascista, que cresceu para o carro, rodeou-o e desatou aos gritos: "É pide, ele é pide !". Eu ia à paisana com a minha mulher, vi o caso um bocado mal parado, mas exibi o meu cartão aos fuzileiros e deixaram-me passar. Aqueles milhares de pessoas passaram então rapidamente do "É pide! É pide"  para o "MFA! MFA!",  e lá saí daquela opressão que de repente se abateu sobre o carro.



Nas negociações com a Frelimo em Junho de 1974 depois de ser incumbido por Spínola para ser rígido acabou a abraçar Samora Machel.  

0 problema é que os argumentos da Frelimo eram extremamente sólidos, queriam a transferência do poder, e Samora Machel apontou claramente a fragilidade enorme das Forças Armadas portuguesas no terreno: "Vocês sabem que, neste momento, estamos a ocupar os vossos quartéis e que o vosso Exército já não está disposto a continuar o combate." Eu, logo à partida. coloquei-me deliberadamente ao lado da Frelimo, porque aquela perspectiva era exactamente a do MFA. O Spínola nem queria acreditar."0 que"?!" E eu disse: Ó meu general, tomei esta posição porque esta é a posição não só minha, nas do MFA."    

"Então, porque é que vocês não ocupam as terras"

Começo a nomear oficiais meus para resolver problemas laborais, de ocupações de casas, de terras... E aquilo começa a ultrapassar, de facto, a sua missão. E, em princípios de 75, comecei a receber  delegações de camponeses, trabalhadores rurais alentejanos que vinham queixar-se ao Copcon: "Os agrários estão a levar o gado, as máquinas agrícolas, tudo para Espanha e a vender, estão a abandonar as terras e aquilo está a tornar-se mato e, depois, nós não temos possibilidade de as trabalhar." Num dos meus impulsos, disse: "Então, porque é que vocês não ocupam as terras ?" "Mas ocupar como? Depois vem a GNR, com as G3, começa a dar uns tiros e nós temos de fugir e abandonar aquilo." Eu disse: Vocês não têm caçadeiras ? "Mas os gajos têm as G3, têm as automáticas... e nós com caçadeiras..." "Então, se o problema é a GNR, vamos combinar o seguinte: todas a manhãs eu tenho aqui um reunião com um representante da GNR, um representante da Guarda Fiscal e outro da Polícia. E vou dizer ao capitão da GNR que aqui aparecer amanhã que, a partir deste momento, a GNR não intervém mais no Alentejo a desocupar as terras que vocês vão ocupar. Vocês, a partir de hoje, agarram nas vossas caçadeiras, vão para a terras e ocupam-nas. Se os agrários aparecerem, vocês têm as caçadeiras na mão e correm com o agrário. Pronto, acabou." 

 

Prisões no 28 de Setembro  

 

Posso garantir que nunca, durante todo o PREC até ao 25 de Novembro, nunca prendi ninguém por minha iniciativa. Todas as prisões feitas pelo Copcon foram iniciadas a partir do 28 de Setembro por decisão do general Costa Gomes. Nós não tínhamos informação concreta sobre quem estava por dentro da "maioria silenciosa" e decidimos prender figuras de proa do regime fascista. Com o Costa Gomes, que os conhece, começamos a estabelecer uma lista das figuras do regime que vamos deter para impedir que possam servir de apoio à manifestação da "maioria silenciosa". 

Mas o comandante Conceição e Silva, que estava a presidir a Comissão de Extinção da PIDE-DGS, chama a atenção para urna coisa: quando quis dar execução a mandados de captura contra elementos da PIDE e da Legião, entregou-os ao Casanova Ferreira que. corno major, estava a comandar a PSP de Lisboa e ele recusou-se a cumpri-los, com a afirmação de que esses mandados não vinham assinados por um juiz. Perante esta intervenção, o Costa Gomes diz: "Ah é?. Bem, não podemos estar a perder tempo, a manifestação está prevista para amanhã, temos de prender essa gente toda... Então, vão ser forças militares a fazer as prisões. Otelo, em meu nome, fica encarregado de assinar os mandados de captura para essa gente toda. Aproveita-se a situação para, além disso, recuperar os mandados de captura preparados pelo Conceição e Silva para elementos da PIDE e da 1ª Legião Portuguesa até ao nível de comandante de terço. Então o Conceição e Silva vai consigo para o Copcon e lá o Otelo assina os mandados de captura para prendermos o Elmano Alves, o Silva Cunha, essa gente toda."

 



"Queres ir preso para os Comandos ou para Cavalaria 7", pergunta a Almeida Bruno no 11 de Março.   

No decorrer da "assembleia  selvagem"  do MFA I recebo um telefonema de um oficial do Copcon presente nessa assembleia que me diz "Meu general, há aqui uma coisa importante: é necessário mandar prender o Almeida Bruno, porque foi decidido aqui na reunião." E eu: "Que caraças! 0 Almeida Bruno?! Mas porquê? Ele também está metido nisto, no 11 de Março?" "Está, julga-se que sim, vai formar--se urna comissão para estudo disso, mas para já é necessária a prisão preventiva do Almeida Bruno..." 0 que é que eu fiz? Telefonei para casa do Almeida Bruno, foi ele que veio ao telefone... "Eh pá, João, tenho aqui um problema grave para te colocar. Acabo de receber um telefonema duma assembleia que está a decorrer no Centro de Sociologia Militar, nas Necessidades, para te dar ordem de prisão. Portanto, pergunto-te uma coisa: tu, como oficial dos Comandos e de Cavalaria, pretendes ir para o Regimento de Comandos, na Amadora, ou pretendes ir para Cavalaria 7 ?" "Eh pá então prefiro ir para Os Comandos." "Então pronto, faz-me um favor, fardas-te, vais para a Amadora, apresentas-te no Regimento de Comandos e dizes que estás debaixo de prisão e que ficas lá a aguardar que sejas solto." Pronto, foi isto que eu fiz. Não me lembro de uma única iniciativa que tenha tomado no sentido de prender fosse quem fosse.



Os mandados de captura em branco  

Eu tinha uma diversidade de poderes, havia tanta coisa que eu tinha de fazer, dia e noite, que dispersava a minha actividade por vários centros. Quando conseguia ir para casa, para ver se descansava alguma coisa (eu dormia nessa altura, três, quatro horas por noite), podia acontecer, como aconteceu frequentemente, que houvesse necessidade de efectuar prisões. Dou um exemplo: sabotagem económica. Aconteceu com frequência que chegava do aeroporto pedido oficial ao Copcon para uma prisão de alguém que pretendia sair do País e que, feita a revista às malas pela Guarda Fiscal, se verificava que levava, sei lá, em notas, dez mil contos, e levava ouro, jóias, etc. nas bagagens. Não se sabia quem era a pessoa, porque não era dada a identificação pelo telefone. Se isto acontecesse às três da manhã, era um problema. 0 que é que eu passei a fazer?. Deixava dez mandados de captura assinados, em branco, no cofre do Copcon. Se eles não fossem utilizados durante o tempo de serviço, durante a madrugada toda, no dia seguinte o oficial de serviço entregava-os ao chefe da repartição de informações para recolherem ao cofre. Se fossem utilizados, o oficial de dia comunicava: "Olhe, estes não foram utilizados, mas estes foram. Foram feitas três prisões durante a madrugada. Estão aqui os nossos exemplares." E, pronto, eram arquivados. Era assim. Tinha esta confiança nos meus oficiais, e depois tinha de delegar nos Comandantes de Região. 0 Charais, o Pezarat, etc., assinavam também mandados de captura em branco, por minha delegação. Não era eu que os assinava, eram eles - "Pelo Comandante do Copcon", e assinavam eles. 

 

Sobre a frase de colocar fascistas no Campo Pequeno  

 

Perguntam-me se nós estamos preocupados ou não com o avanço que têm tido as forças contra-revolucionárias, que assaltam, destroem, incendeiam sedes de partidos de esquerda, do Partido Comunista, do MDP, de outros partidos de esquerda.. E eu digo: "Olhe, estamos, de facto, muito preocupados. Isto está a ter um crescendo muito grande, e oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam lá a nós. Com este crescimento da contra-revolução, qualquer dia já estamos nós encostados à parede, e eles liquidam-nos."  

"Otelo nunca levantaria um dedo contra nós", diz Vitor Alves

 

Recordo-me que, há tempos, estava a jantar em casa do Vítor Alves e a discutir exactamente tudo isto, quando ele disse: "Eh pá, tu tiveste a possibilidade, de facto, durante o PREC, de levar por diante a instauração da democracia directa, do chamado poder popular. Mas, para que isso acontecesse, precisavas de ter tornado uma posição extremamente forte: encostavas à parede o Vítor Alves, o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, o Costa Neves, o Garcia dos Santos, o Eanes, etc., tipo dia de S. Valentim, e liquidavas a malta toda. E aí tinhas a possibilidade de a instaurar.  A mulher dele levou aquilo a sério. "Ó Vítor, estás a dizer que Otelo... Alguma vez imaginas isso possível?" E o Vítor disse: "Não, não acho possível, mas exactamente por isso é que o Otelo perdeu, porque quis levar por diante um projecto que não era exequível porque nós não alinhávamos. E como é evidente o Otelo nunca levantaria um dedo contra nós, nós ganhámos."   

 

"Mas que prazer tão grande que eu tenho em vê-lo", diz Spínola 

 

Tive, da parte do próprio Spínola, uma demonstração para mim extraordinária: em 94, passou por cá o Yasser Arafat, e o Mário Soares ofereceu um jantar na Sala dos Espelhos do Palácio de Queluz em sua honra. A certa altura, vejo aparecer o marechal Spínola e pensei: "Bem, já vou ter aqui um problema grave." Estávamos na conversa, o marechal aproximou-se do nosso grupo, a sala era pequena e só havia um cadeirão na sala, forrado a vermelho, onde ele se foi sentar. De repente, levanta-se do cadeirão direito a mim.. "Com licença. Mas... mas você é o Otelo!" E eu disse: "Pois sou, meu general. É o meu nome, de facto."  "Mas que prazer tão grande que eu tenho em vê-lo! Há quanto tempo não o via! Mas que prazer tão grande!" Agarrou-me na mão e arrastou-me por ali fora à procura da mulher, a D. Helena. "Maria Helena! Olha quem é que está aqui!" Eu parecia o filho pródigo. Bom, não satisfeito com isso, não me largou a mão e quando vêm chamar para o jantar leva-me atrás. Ele era o primeiro na lista do protocolo que vai sendo anunciada: "Senhor marechal António de Spínola e esposa!" E, levado pela mão, entro eu como segunda figura protocolar. 0 responsável do protocolo fica aflito, a olhar para mim. .. "Major...?" E eu: "Tenente-coronel." "Tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho!" E entro na Sala dos Espelhos.

 

"Eh pá, não dás nem um canivete"  no 25 de Novembro

 

"Quando termina, às quatro e meia da manhã, uma reunião extraordinária do Conselho da Revolução, eu passo pelo Copcon. Sabia que estava aquela malta toda em polvorosa à minha espera, e vou lá dizer-lhes qual tinha sido a sentença final. Quando acabo de explicar que, de facto, prescindi do lugar de comandante da Região Militar de Lisboa, que vai ser entregue ao Vasco Lourenço, o Costa Martins, da Forca Aérea, que estranhamente lá apareceu, é o primeiro a tomar a palavra para dizer alto e bom som que os pára-quedistas não aceitam essa situação e que vão ocupar as bases aéreas e o Comando da Região Aérea. Isto, a mim, causa-me urna estranheza muito grande, e pergunto-lhe: "Então, mas porquê? 0 que é que os pára-quedistas têm a ver com isto? Isto aqui é o Comando da Região Militar de Lisboa, e eu continuo como comandante do Copcon. Eles são da Força Aérea, portanto, não têm nada a ver com isto." "Eh pá, mas isto que eu te estou a dizer é verdade, vai acontecer." Deitei-me eram seis e meia da manhã ou coisa do género, e cerca das onze e meia da manhã acordado por um telefonema do meu chefe de Estado-Maior, o Artur Baptista que me pede a rápida comparência no Copcon porque algo de grave se está a passar. Eu pergunto: "Mas o que é que foi ?" "São problemas da Força Aérea, mas que podem ser extremamente preocupantes." Tão rapidamente quanto possível arranquei, fui para o Copcon, e o Artur Baptista explicou-me: "Meu general, na madrugada de hoje, às cinco e meia da manhã, as bases aéreas foram todas ocupadas, o Estado-Maior da Força Aérea e o Comando da Região Aérea. Está preso o Pinto Freire, no Cornando da Região Aérea, e a situação é extremamente grave." E eu disse: "Caraças, então aquilo que o Costa Martins dizia confirmou-se." Fui para Belém, apresentei-me ao Costa Gomes, que me chamou de lado e disse: "Otelo, ainda bem que chega! Estava aqui preocupadíssimo com a sua ausência. Você já sabe o que se está passar? Mandei cá chamar o Costa Martins disse-lhe para ser portador da seguinte proposta junto dos  pára-quedistas: eles abandonam já as bases aéreas que estão a ocupar, regressam todos a Tancos, e amanhã eu e o Otelo vamos a Tancos e proponho-lhes que abandonem a Força Aérea, regressem ao Exército e constituam urna força organizada às ordens do Copcon. O que é que o Otelo acha disso?" E eu disse: "Acho óptimo." Mas o Costa Martins nunca mais apareceu no Palácio de Belém, desapareceu das vistas a partir daí. Portanto, o Costa Gomes esperou... eram duas, duas e meia da tarde. 0 Costa Gomes resistiu às pressões do Vasco Lourenço para desencadear a operação que o Eanes tinha preparado e aguentou até às quatro horas, mas o Costa Martins não apareceu. Nessa altura, o Costa Gomes deu luz-verde para o arranque da acção. Os Comandos foram para a Calçada da Ajuda, como se sabe, dominaram a Polícia Militar, mas nenhuma das unidades sob o meu comando saiu, porque eu não dei ordens a ninguém para sair. Ficaram aquarteladas, à espera dos acontecimentos, a ver como aquilo evoluía. Quando os comandos começam a atacar a Polícia Militar, esta reage e dão-se os cinco mortos. Também há uma iniciativa do Dinis de Almeida, que sai com chaimites do RALIS, à revelia de qualquer ordem que Ihe tivesse sido dada. As indicações minhas eram para aguentar. Eu estava em Belém e recebo, por exemplo, uma chamada do capitão Rosado da Luz, que comandava o forte de Almada, em pânico, a dizer--me: "Meu general, estão aqui a cercar o forte de Almada! Sei lá, eles devem ser para aí uns dez mil operários do Alfeite, da Setenave, da Lisnave, estão aqui a exigir a entrega de armas. 0 que é que eu faço? Abro os portões? Dou armas, não dou armas? E eu disse: "Eh pá, não distribuis nem um canivete, nada! Porque se dás uma arma a alguém temos para aí um granel desgraçado neste País."