No programa do XXII Governo Constitucional, que eu apoio, lê-se o seguinte: “A segurança constitui um pilar fundamental do Estado de Direito Democrático e um garante da liberdade dos cidadãos. Porque ninguém pode ser verdadeiramente livre se não se sentir seguro. Acresce que um país seguro contribui também para uma sociedade mais tolerante, livre e democrática. Na legislatura que ora finda, Portugal foi reconhecido como um dos três países mais seguros do mundo. Ora, num mundo assolado por ameaças globais cada vez mais diversificadas, complexas e sofisticadas, importa criar as condições para que esse nosso estatuto de país seguro – por si próprio, um fator de competitividade internacional –, possa sair consolidado e reforçado”.
Num dos três países mais seguros do mundo, Ihor Homenyuk foi torturado até à morte numa sala, pelo Estado. Ali, no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do Aeroporto de Lisboa. É injusto não reconhecer que o MAI, Eduardo Cabrita, entre outras medidas imediatas, que lhe competiam, determinou a abertura de um inquérito por parte da Inspeção Geral da Administração Interna; a abertura de processos disciplinares ao Diretor e Subdiretor de Fronteiras de Lisboa - cujas comissões de serviço foram cessadas no próprio dia - bem como a todos os envolvidos nos factos relativos à morte Ihor; o encerramento do EECIT para reestruturação e introdução de alterações significativas; e, para além das obras na infraestrutura, o MAI decidiu que o espaço passa a acolher apenas os cidadãos estrangeiros com recusa de entrada em Portugal, deixando de alojar requerentes de asilo. O inquérito da IGAI concluiu pela instauração de 12 processos disciplinares e foi remetido ao Ministério Público por despacho, de 7 de outubro, do MAI. O inquérito foi, assim, mais longe do que a acusação do MP.
Continua a ser inaceitável que tenham decorridos 271 dias após a morte de Ihor para que a diretora do SEF saísse de cena, para mais com justificação dúbia.
Continua a ser inaceitável que ouçamos a viúva de Ihor testemunhar a sua solidão absoluta, uma mulher abandonada - e com medo da palavra “Portugal” - que pagou a trasladação do corpo do homem que o Estado português torturou e assassinou.
Continua a ser inaceitável que o Governo tenha demorado nove meses a decidir atribuir uma indemnização.
Continua a ser inaceitável ouvir do Presidente da República e dos Ministros responsáveis que o seu lamento teve como interlocutor uma diplomata e não a viúva de Ihor, que não recebeu o telefonema de ninguém, nem de quem faz do telefone uma campanha permanente.
É inaceitável, é absolutamente inaceitável, que o pior atentado aos direitos humanos de que tenho memoria desde o 25 de abril tenha ocorrido pela mão do Estado e não haja um pedido de desculpas.
O que se passa?
Não se esperaria de quem representa o Estado na Presidência e no Governo um assumir de responsabilidade objetiva? Não é essa a atitude que dignifica o Estado de direito que falhou e que deve prometer tudo fazer para que nunca, mas nunca mais, nada de semelhante possa ocorrer?
Pois eu peço desculpa. A tortura até à morte de um cidadão à guarda de uma polícia tutelada por um Governo que responde perante um Parlamento que integro leva-me a pedir desculpa. Se uns falharam mais do que outros, falhei certamente. Cubro-me de vergonha e sinto-me impelida a querer saber exatamente o que se passou e a contribuir para pensar uma nova forma de relacionamento do Estado com os imigrantes. Desde logo, como há muito defendo, provavelmente com pouca força, talvez seja tempo de percebermos que a imigração não é um assunto de polícia. Os imigrantes não são putativos criminosos, pelo que podíamos efetivamente alterar por completo a lógica de receção e relacionamento com quem procura Portugal para trabalhar e viver.
Nesse dever de apuramento da verdade, agradeço ao jornalismo, pilar do Estado de direito. Quero agradecer em especial ao Diário de Notícias, cujas jornalistas Fernanda Câncio e Valentina Marcelino não acordaram agora. Foram elas que nos acordaram, dia após dia, para factos que investigaram com enorme rigor e determinação. Muitas das perguntas que temos a obrigação de colocar, nomeadamente a Cristina Gatões, que espero que mantenha a vinda ao Parlamento, resultam deste jornalismo. Da mesma forma e com o mesmo sentido, é devido um agradecimento ao Público, porque a jornalista Joana Gorjão Henriques nunca largou este caso que nos cobre de vergonha.
É verdade que houve demasiado silêncio e inação. Desde logo de todos e de todas nós. A passividade cobarde do país que aplaudiu a América que saiu à rua por Floyd dá que pensar.
Pela minha parte, sei que tenho de pedir desculpa e sei que tenho de agradecer ao jornalismo.