A luta pela preservação da democracia é, para alguns, uma luta que implica a ilegalização dos inimigos do Estado de direito. Têm-se multiplicado as vozes que exigem – nomeadamente através de petições – que movimentos de extrema-direita e Partidos de extrema-direita sejam ilegalizados, exigindo-se também a ilegalização de todas as expressões de racismo presentes na sociedade.
Para esse efeito é invocado o artigo 46, nº 4, da Constituição, que restringe a liberdade de associação ao prescrever que e não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
O “fascismo” referido num preceito elaborado em 1975 não é o que um homem quiser. Como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a proibição de organizações de ideologia fascista traduz-se na limitação da liberdade de organização política, dirigida contra a revivescência do regime autoritário de 1933. Por isso, a definição de organizações fascistas terá de reportar-se, em particular, à ordem política concreta, extinta em 25-04-1974 (…), com o seus próprios símbolos, expoentes, organizações e ideologia, bem como às ideologias em que aquela se inspirou, designadamente o fascismo italiano (…).”
Recordam ainda, os mesmos autores, que, à luz da CRP, podem defender-se ideias fascistas no exercício da liberdade de expressão individual, tal não configurando um delito de opinião. O que se proíbe é a fundação de organizações fascistas que se destinem à defesa e promoção de ideias ou atividades fascistas.
O mesmo se passa com as “organizações racistas”, elemento normativo introduzido em 1997 em estreita ligação com a dignidade da pessoa humana.
Entre os crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, consagrados no título III do Livro II do Código Penal, consta o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punido pelo artigo 240.º, que tem como conduta típica, entre outras, fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, ou que a encorajem, [alínea a) do n.º 1]. O que é matéria de crime deve, naturalmente, ser condenado.
Para além de um correto entendimento das normas constitucionais (desde logo do seu contexto) é fundamental distinguir o político do jurídico. Foi isto que escrevi num parecer recente.
A nossa Constituição, enquanto expressão de uma sociedade aberta, não impõe um modelo de tolerância virtuosa, porque, se assim fosse, a lei fundamental negaria o núcleo fundamental da liberdade de expressão e teria de consentir a censura, evidentemente proibida pelo artigo 37º, nº 2. Isto para dizer que o artigo 46º, nº 4, proíbe as organizações, mas não proíbe a expressão individual do pensamento racista ou fascista, por mais condenável que ele possa ser. Temos de distinguir os planos do pensamento, da palavra e da ação.
Por vezes, quando se explica o alcance necessariamente limitado do artigo 46º da Constituição, é-se confrontado com alguma perplexidade, como se estivéssemos a proteger os inimigos da democracia. Acontece que faz parte do Estado de direito democrático e, portanto, de uma Constituição democrática, assumir o risco de acolher os intolerantes.
As restrições à liberdade de associação e as restrições à liberdade de organização previstas no artigo 46º da Constituição devem ser lidas tendo em conta que as primeiras, introduzidas em 1976, constam de um preceito referente à liberdade de associação, enquanto que as segundas foram introduzidas em 1997 no mesmo preceito, ou seja, sem que o artigo relativo à liberdade de expressão (artigo 37º) fosse beliscado.
O artigo 46º da Constituição deve, evidentemente, ser levado a sério, mas não pode ser pretexto político para pretender ilegalizar a livre expressão do pensamento e mesmo da organização política dos nossos adversários políticos quando não estão em causa os reais significados das restrições constitucionais aqui referidas.