Contra-semântica

Não falemos da eutanásia em abstrato – O nosso projeto de lei

É muito importante, no debate em curso sobre a despenalização da eutanásia em condições especiais, não cairmos na armadilha de uma discussão abstrata, amiga de falsos argumentos e de demagogias. Neste momento, há projetos concretos apresentados na Assembleia da República, pelo que é sobre eles que temos de debater e não sobre castelos de ar. O projeto de lei do GPPS, no qual a Deputada Maria Antónia Almeida Santos e eu própria tivemos especial responsabilidade, está disponível no site do Parlamento e é bom que se apresentem argumentos sobre esse trabalho concreto.

Partimos da análise das balizas constitucionais que relevam para esta matéria, estando seguros de que o Estado de direito democrático atual, pluralista, não pode impor uma única conceção de vida a todas e a todos, sem qualquer espaço para as escolhas vitais que tomamos ao longo do nosso percurso. O Estado não é, em suma, paternalista.

A autonomia implícita no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito ao desenvolvimento da personalidade garante que sou eu quem determina o meu destino, desde que não prejudique terceiros. A ordem jurídica tem evoluído assente neste espírito, quer no que toca à saúde e ao final da nossa vida, quer no que toca aos direitos individuais.

Veja-se a consagração legal do princípio do consentimento informado, da proibição do encarniçamento terapêutico e o testamento vital. Mas, também, a IVG em certas circunstâncias, o casamento igualitário, a adoção por casais do mesmo sexo, a PMA para todas as mulheres ou os direitos dos transexuais.

No preâmbulo do projeto de lei do GPPS pode ler-se a fundamentação constitucional cuidada da eutanásia não punível em situações especiais, sendo claro que o legislador tem liberdade para atuar, desde que respeitando a Lei Fundamental. É o que explicam autores como Jorge Miranda, Rui Medeiros, Marcelo Rebelo de Sousa, José de Melo Alexandrino, Gomes Canotilho, Vital Moreira, Costa Andrade ou Jorge Reis Novais.

Parece-nos, com respaldo em vários penalistas, desproporcional que antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde seja punida com pena de prisão. Parece-nos desproporcional, desumano e intolerante. Todas as vidas são iguais, pelo que quem queira viver de acordo com uma conceção segundo a qual a vida humana é sagrada desde a conceção até à morte natural é tão digno como quem tenha uma outra conceção da vida e que queira – é o meu caso – que se lhe não imponha um dever de viver nas circunstâncias muito especiais que acima referi.

No regime proposto, com requisitos claros e objetivos, a pessoa que pede a eutanásia está numa situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, pelo que precisa, justamente, de ajuda para concretizar um ato que não deixa de ser, absolutamente, uma decisão individual, livre e esclarecida.

Citando o preâmbulo, “O projeto de lei do GPPS é rigoroso e assente na garantia da autonomia do doente.

É criado um Registo Clínico Especial que integrará todas as fases do procedimento clínico.

O pedido de abertura do procedimento clínico é efetuado pelo doente, que tem de ser uma pessoa maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal.

O pedido é dirigido ao médico escolhido pelo doente, o médico orientador. Este é o primeiro passo do procedimento clínico.

Salvaguarda-se a possibilidade de estar a decorrer ou de se iniciar um processo judicial visando a incapacidade do doente, suspendendo o procedimento, considerando assim a preocupação manifestada pelo Conselho Superior Magistratura em parecer relativamente a outra iniciativa sobre a matéria.

A segunda fase do procedimento clínico é o parecer do médico orientador. O médico orientador emite parecer sobre se o doente cumpre todos os requisitos e presta-lhe toda a informação e esclarecimento sobre a situação clínica que o afeta, os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis e o respetivo prognóstico, após o que verifica se o doente mantém e reitera a sua vontade, devendo a decisão do doente ser registada por escrito, datada e assinada.

De resto, todos os passos do procedimento clínico, e neles, a reiteração da vontade do doente, são registados, datados e assinados.

A terceira fase do procedimento clínico é a confirmação pelo médico especialista na patologia que afeta o doente.

Se este parecer não for favorável à antecipação da morte do doente, contrariando, assim, o parecer do médico orientador, o procedimento em curso é cancelado, só podendo ser reiniciado com novo pedido de abertura.

A quarta fase do procedimento clínico é eventual. Trata-se da verificação por médico especialista em psiquiatria, nos casos expressamente previstos no projeto de lei.

Numa quinta fase, recolhidos os pareceres favoráveis dos vários médicos intervenientes, e reconfirmada a vontade do doente, o médico orientador remete então, solicitando parecer sobre o cumprimento dos requisitos e das fases anteriores do procedimento, à Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte. Em caso de parecer desfavorável desta Comissão, o procedimento em curso é cancelado, também só podendo ser reiniciado com novo pedido de abertura.

A derradeira fase do procedimento clínico é a concretização da decisão do doente. Deixa-se claro que no caso de o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a antecipação da morte, o procedimento é interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão.

Evidentemente, a revogação da decisão de antecipar a morte em qualquer momento cancela imediatamente o procedimento clínico em curso.

Por vontade do doente, o ato de antecipação da morte pode ser praticado no seu domicílio ou noutro local por ele indicado, desde que o médico orientador considere que o local dispõe de condições adequadas para o efeito.

Além do médico orientador e de outros profissionais de saúde envolvidos no ato de antecipação da morte, podem estar presentes as pessoas indicadas pelo doente.

Como se pode ler no projeto de lei, todas as fases são registadas, em todas elas a vontade do doente é reiterada e registada e os deveres de informação ao doente sobre todas as suas alternativas e direitos perante uma decisão indelegável estão inequivocamente consagrados.

Em termos de fiscalização e de avaliação, é expressamente atribuída a competência à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS)quanto à realização de fiscalizações aos procedimentos clínicos de antecipação de morte.

É também criada a já referida Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte para emissão do parecer obrigatório referido e avaliação anual do cumprimento da lei, totalmente composta por membros indicados por entidades independentes da área da justiça, saúde e bioética.

Reforçando a importância da informação e esclarecimento, prevê-se que a Direção-Geral da Saúde disponibilize, no seu sítio da Internet, uma área destinada a informação sobre a realização de eutanásia não punível.

O projeto de lei respeita assim um critério de equilíbrio e prudência no enquadramento legal de uma realidade complexa e sensível, salvaguardando, com rigor, em cada uma das fases do procedimento clínico para a antecipação da morte, o cariz excecional da exclusão de ilicitude, garantindo uma verificação qualificada da situação de sofrimento extremo e do caráter irreversível e terminal da doença ou lesão, a par do estrito cumprimento de uma vontade atual, séria, livre e esclarecida do doente, e de um modelo de fiscalização e avaliação permanente da aplicação da lei.

Estamos, pois, confiantes de que apresentamos um projeto de lei com todas as garantias exigidas pelos parâmetros constitucionais aplicáveis, no âmbito de um processo legislativo que se pretende doravante aberto a todos os contributos construtivos e sugestões de aperfeiçoamento que se apresentem no debate em curso no quadro parlamentar e na sociedade portuguesa”.

É, pois, sobre estas condições especiais em que a eutanásia deixará de ser punível que deve recair o debate. É desonesto falar-se na “morte de idosos”, em “rampas deslizantes”, em “cultura da morte” ou num “ataque aos cuidados paliativos”. Basta ler o que aqui escrevi para perceber que isto nada tem a ver com “idosos”, que todas as cautelas são tomadas, pelo que não há base argumentativa para falar em “rampa deslizante”, que a eutanásia prevista no projeto de lei do GPPS não tem relação alguma com os cuidados paliativos, é um outro assunto e que a “cultura da morte”, tal como escrevi AQUI, mais não do que um slogan desrespeitador do pluralismo de visões da vida.

De resto, estou recordada desses argumentos aquando do debate em torno da IVG ou da despenalização do consumo de drogas. Ao contrário do anunciado pelos profetas da desgraça, a IVG não para de diminuir, há zero mortes maternas decorrentes de aborto clandestino e somos um caso de estudo no que toca ao fim da perseguição penal dos consumidores de droga.

Numa palavra, Portugal tem cartas para dar contra o argumento da “rampa deslizante” e os demais.

Concentremo-nos no projeto anunciado. Não falemos em abstrato. A não ser que queiramos confundir as pessoas.