A agenda de Mário Claúdio

O Espólio de Eugénio de Andrade

Mário Cláudio

A notícia de que a Câmara Municipal do Porto adquirirá em breve o espólio de Eugénio de Andrade, caída nas cercanias do termo de um ano magro, e anunciante de um outro não muito mais refeito, só poderá suscitar acrescida apreensão. E a repugnância que o vocábulo "espólio" sempre desencadeia, associado como anda à noção dos resíduos de toda uma vida, e até à de um património sujeito ao saque dos mercenários, parece cobrar aqui completa justificação. As vicissitudes sofridas pelos bens materiais que Eugénio deixou configuram de facto uma história triste, e exemplarmente lusa, marcada por individuais agendas de auto-promoção, e pelas consequentes vaidades irritadas e irritantes, tudo isto a remeter para os confins da memória o respeito, o afecto, e a estima, que a obra do poeta deverá merecer de cada um de nós.

Poucos como Eugénio de Andrade se terão preocupado tanto com o destino post-mortem dos seus pertences, com o cumprimento das suas últimas vontades, e com a preservação do seu trabalho, e do seu nome, para além do tempo que biologicamente lhe coube. Recordo-me de o ver ainda longe do fim, receoso de não conseguir anotar, e antes que a velha da foice chegasse, a integral das numerosas variantes dos seus versos, inculcando assim uma lição de escrúpulo e paciência, proveitosa ao escritor em gérmen que o assinante destas linhas conformava. E a resistência que o autor de Obscuro Domínio opunha a qualquer forma da usura inseparável da condição humana, e das letras que a mesma segrega, denunciava na verdade o helenismo que ele não cessaria de reivindicar, adverso ao sic transit gloria mundi da mentalidade judaico-cristã.

Mas a compra pela autarquia portuense daquilo que constituiu o substrato físico da extinta Fundação Eugénio de Andrade aconselha séria reserva, e suspeita legítima. Ao município tem competido, e desde há muito, a guarda da herança de António Nobre, composta por livros e manuscritos, fotografias e objectos de uso pessoal, ou seja, uma colecção de relevância museológica, invisível para a população, arrecadada como se acha nos gavetões da Biblioteca Pública, e que tão-só duas ou três vezes emergiu para exposições pontuais. Nem sequer a subsistência da casa onde o criador do Só acabou os seus dias, e a cuja progressiva ruína o filistino executivo camarário actual vem assistindo de braços cruzados, se quis salvar para alojamento do precioso acervo.

É de prever agora que com a fanfarra da praxe se baptize de Eugénio de Andrade uma sala da biblioteca onde se encafuem heteróclitos itens, testemunhos do percurso terreno de um grande vulto da literatura portuguesa. Será isso porém render a homenagem de que o poeta se tornou credor? Esperemos para o descobrir, acalentados pelo horizonte que nos oferece o próximo arrumo das botas de uma governação local como a presente, mais do que insensível à cultura, jurada inimiga dela. Talvez escape então Eugénio, quem sabe?, a um terceiro beijo da morte, e mais gélido do que os restantes dois.