Mário Cláudio

Não há que duvidar, ao longo das décadas tem sido o autor desta crónica com assiduidade, e conscientemente, sujeito activo, e de forma mais rara, e mais ingénua, sujeito passivo, do crime de corrupção. Vem isto a propósito da esclarecedora entrevista, concedida pelo ex-ministro João Cravinho ao Boletim da Ordem dos Advogados, da qual constam afirmações oportunas e certeiras, a explicar alguma da miséria a que chegámos. Declara ele porém com boa dose de optimismo que "nos últimos anos, com a reabilitação dos serviços públicos e, sobretudo, com a informatização, a pequena corrupção diminuiu acentuadamente." E acrescenta, "Toda a gente se lembra de que nas repartições nada se fazia sem uma pequena lembrança e os processos estavam organizados segundo o critério e a ordem de cada um."

Que haja desaparecido a "pequena corrupção", indiscutivelmente mais palpável, e por isso mesmo mais indefesa, e ficado a grande, só de longe a longe detectada, provida como se encontra de uma parafernália de válvulas de segurança, eis o que dá que pensar, e proporciona não pouco desconforto aos ínfimos de nós. A verdade é que, ao passar em silêncio as mais subtis, e as mais insidiosas, técnicas de corromper, e de ser corrompido, João Cravinho consegue transformar-nos na revoada de anjos e arcanjos que gostaríamos de constituir. No sul de uma Europa onde as relações de parentesco, e de vizinhança, se mostram quase de coabitação, e a emotividade anda à flor da pele, não existe quem não incorra na prática activa, ou passiva, do nefando delito.

Quantas e quantas vezes, e mentindo descaradamente, não invocou o assinante destas linhas os quilómetros e quilómetros percorridos, a fim de obter acesso a um monumento encerrado por falta de pessoal, ou por razões de horário, contemplando depois o cicerone taralhouco com a magra espórtula, equivalente a uma peita! E quão frequentemente não terá sorrido em termos radiosos a minha amiga São, mulher muito bonita, mas péssima condutora, no intuito de que não a multasse por desrespeito aos semáforos o agente sensível aos encantos femininis! Será de recordar aqui, mas entre parênteses, que apenas com suma cautela deverá o automobilista macho comportar-se de igual maneira perante a senhora guarda, isto sob pena de se defrontar com um cúmulo jurídico, o dos crimes diabolicamente engatados, e já sem se referir a contravenção prevista e punida pelo Código da Estrada.

O vil metal, pedra de toque dos ilícitos económicos como a corrupção, o tráfico de influências, o abuso de confiança, a burla, ou o completamento à custa alheia, acabará pois por não configurar necessariamente a moeda de troca. Sabemos o que executou, ou o que consentiu em que lhe executassem, e impunemente, o Presidente Clinton sobre a secretária da Sala Oval, ou encostado a ela, mas desconhecemos a agenda de Monica Lewinsky. E prosseguiremos na ignorância do que, de tão grave, e de tão instante, terá determinado a saída de David Petraeus, director da CIA, o qual, não desempenhando funções de Chefe de Estado, mereceria porventura contar com mais franca tolerância da parte de quem manda, uma elite impoluta, e casta até mais não.

Aquelas "moscas douradas", descritas pelo poeta Shelley, "que tostam num terraço ao calor do sol, e se alimentam da própria corrupção", irão continuar a remexer por aí. Quanto às restantes, as vulgaríssimas, que os pobres de nós humildemente representam, essas sim, acham-se em vias de irreversível extinção.