Também os cartões de Natal, encantadoras vias de manifestação da afectividade cívica, acabam de sofrer o castigo da chamada "obsolência", substantivo que o dicionário aqui ao alcance descreve como "qualidade do que é obsoleto", e "obsoleto" como "o que está fora de uso, antiquado, fora de moda". E o emprego do mesmo vocábulo, infrequente até há pouco, generalizou-se a um ponto tal que não existe hoje analfabeto de humanísticas que não o esgrima, a rebentar pelas costuras da sua empáfia tecnológica. Estar contra o "obsoleto" significará assim situar-se cada vez mais ao dispor da "obsolência" imediata, o que redundará em perder a todo o tempo o gozo do presente em prol de um futuro que se nos escoa por entre os dedos da mão.
Os adoráveis cartões de Natal desapareceram pois de um momento para o outro, resultado do decurso de século e meio de queixas pelos rios de dinheiro que os urbanos do mundo cristão, e não só, gastavam na sua compra. E substituem-se agora por dois ou três cliques, bem mais económicos, debitando um recado tão jocoso quanto possível, e que rapidamente se lê num écran iluminado, a fim de se transitar ao recado seguinte. A verdade porém é que, se os simpáticos cromos da era vitoriana, igualmente inventados de olho arregalado para o lucro, acrescentaram muito de calor às nossas celebrações natalícias, a actual erradicação deles parece saldar-se em prejuízo de um certo quadro de valores, o dos inerentes ao coração da espécie a que pertencemos. A redução ao plano quase exclusivo da visualidade, de resto em harmonia com determinado "progresso tecnológico", daquilo que se nos impõe que sintamos, e de quanto se julga característico do nosso comportamento, ilustra-se esplendidamente com a rasura dos cartões de Natal. Passa-se de súbito da imagem discursiva ao texto taquigrafado, do papel impresso à neutralidade do relâmpago sem cheiro, do toque da mensagem à sua inapreensibilidade, e enfim do paladar que nos deixava na língua a cola do sobrescrito, pensem o que pensarem os maníacos da higiene, a um deserto de sabores que vai dando lugar ao espectáculo do capricho gourmet, ou ao cúmulo de fotos de delícias gastronómicas que os mais simples não cessam de postar no facebook, e que se comentam com animalescos "hummmmmmms!".
O festival pagão que se aproxima, precedido desta feita de um novo apocalipse, o que o calendário maia assinalava, desfilará portanto diante de nós como uma procissão de exaustos de obrigações, e de desamparados dos meios para as cumprir, não já a escassos milénios, mas a anos-luz, de distância dos pastores que se apressavam na oferta dos seus artigos sem marca, e isentos da vigilância da A.S.A.E., dos nutricionistas encartados, e dos definidores da estética do corpo que nos cabe. Não constituirá tudo isto razão de sobra para atirarmos às malvas quanto for "caixinha que transforma o mundo", e optarmos por acender uma vela, uma só, pela persistência da nossa dignidade?