Sociedade

Ou escreves com a mão bonita (que era a direita) ou levas com a régua

É dia mundial do canhoto. A vida já foi complicada (e será que ainda é?) para quem teve e tem na mão esquerda o auxílio fundamental: "Era recorrente pegarem na minha mão direita e forçarem-me a desenhar as letras do alfabeto. Sei que me doía porque faziam imensa pressão".

Expresso

Ser canhoto foi durante muito tempo um "defeito" que impunha correção, porque escrever bem só se fazia com a mão direita. Embora sem consequências a longo prazo, atualmente esta imposição é considerada como antipedagógica.

O dia internacional do canhoto, assinalado esta quarta-feira, foi instituído com o objetivo de travar a discriminação dos esquerdinos. Mário Oliveira, de 32 anos, é um desses casos. Tanto na escola como em casa, foi obrigado a escrever com a mão direita, "como se fizesse algo errado". Confessa que não sofreu maus-tratos mas lembra-se de lhe dizerem "ou escreves com a direita ou levas com a régua".

"Além disso era recorrente pegarem na minha mão direita e forçarem-me a desenhar as letras do alfabeto. Sei que me doía porque faziam imensa pressão", conta Mário Oliveira.

Hoje realiza sem o menor esforço a escrita com a direita mas não perdeu hábitos de canhoto: "Jogo à bola com o pé esquerdo e como com a mão esquerda".

Os canhotos que foram obrigados a escrever com a mão direita tornam-se, na sua maioria, ambidestros. "Tanto na escola como em casa convenceram-me a escrever com a 'mão bonita' e eu, sendo perfeccionista e obediente, nem questionei", diz Doroteia Primor, 44 anos, professora do 3º ciclo. Não se sentiu prejudicada por essa imposição - aliás, até a considera "uma mais-valia", porque consegue mais com ambas as mãos. 

 

Porque é que há pessoas canhotas?

O cérebro está dividido em dois hemisférios, o direito e o esquerdo, e cada um controla os movimentos que correspondem à parte oposta do corpo. "Os gestos que fazemos com a mão esquerda, o pé esquerdo e o olho esquerdo são controlados pelo hemisfério direito. Por sua vez, os movimentos do lado direito do corpo são regulados pelo hemisfério esquerdo", explica a psicoterapeuta Maria Pascoal, que trabalha no CRESCER (Centro de Psicologia da Família, da Criança e do Adolescente), em Lisboa.

Maria Pascoal explica as implicações de coagir um canhoto a escrever com a mão oposta. "Travar algo tão natural como escolher a mão dominante impede que o processo flua" e cria dificuldades na escrita. "Vai ser mais lenta e o grafismo também vai sofrer alterações", precisa.

"Contrariar potencia um sentimento de desigualdade. Podemos então falar de dor emocional, porque a motricidade de um canhoto não é, de facto, igual à da maioria das pessoas". Mas ressalva que não são conhecidas consequências a longo prazo.

Neste sentido, a docente Isabel Nisa, professora primária na E. B. 1 Ferragudo, no Algarve, esclarece que "o tratamento nunca deve ser diferenciado e não há pressão para que os canhotos modifiquem a posição da mão". Acrescenta ainda que, antigamente, os adultos contrariavam a lateralidade das crianças quando se constatava que a mesma era esquerdina, mas que nos dias de hoje isso é considerado antipedagógico. 

 

Dificuldades de um canhoto

Pedro Rui Silva é um jovem de 19 anos que estuda engenharia mecânica. Praticante da modalidade de judo há 15 anos e de golfe há 10, explica que há um sentimento agridoce no desporto. No judo ganha vantagem porque "os seus adversários não sabem combater à esquerda", mas é no golfe que enfrenta obstáculos - tem de encomendar tacos especiais adaptados à sua mão e que consequentemente são mais dispendiosos.

Nunca em casa lhe disseram que ser canhoto era algo "vergonhoso", mas ri-se enquanto se recorda das tesouras e do desconforto: "Ficava com o polegar apertado".

Escrever com a mão esquerda também tinha os seus momentos "menos bons". Recorda que escrever com a mão virada para dentro, como quase todos os canhotos, não lhe permitia fazê-lo tão depressa quanto queria.

Mas a lista de material a evitar não fica por aqui. Canetas de gel não são práticas para quem escreve de dentro para fora, porque "se corre o risco de borrar tudo"; os cadernos com argolas "dão dores nos pulsos pela pressão" e não conseguem escrever até ao fim da folha devido à posição da mão. Se possível, o colega do lado também deve ficar do lado direito, para evitar "o choque entre cotovelos".

Outra dificuldade é o facto de as aulas em auditórios não terem os apoios para escrita para canhotos, só para destros. Já quando se sentam à mesa, um dos primeiros gestos é trocar os talheres. A maior dificuldade surge com a faca de peixe.





O dicionário não facilita

O dia internacional dos canhotos iniciou-se a 13 de Agosto de 1992 pelo clube britânico Left-Handers, como forma de protesto contra a discriminação que incidia sobre os esquerdinos. Entretanto houve uma mudança de mentalidades, mas no léxico perdura o sentido 'menos simpático' da palavra.

No dicionário português um canhoto é alguém que trabalha melhor com a mão esquerda, mas também serve para designar alguém que é desajeitado. Pelo contrário, um destro é aquele que é dotado de destreza, que é hábil, ágil e astuto. Também há expressões populares que valorizam de forma diferente os dois hemisférios do corpo: diz-se que o desafortunado acordou com o pé esquerdo e, na passagem de ano, desejamos aos demais que entrem com o pé direito.

A maioria das pessoas é destra (90% da população).