O telefone toca e ouve-se uma voz em inglês do outro lado da linha: "You have a bomb in the hotel, you motherfucker!" (em bom português, "há uma bomba no hotel, seu cabrão!"). A telefonista entra em pânico. Chama o diretor da receção. Em poucos minutos a Brigada de Minas e Armadilhas da PSP chega ao Sheraton, no Porto. Não encontra nada. Mas a 'bomba' está lá, "escondida" na suite presidencial, no 18.º andar do edifício na Avenida da Boavista. Um metro e oitenta de carga altamente explosiva "made in Germany", protegida por dois seguranças à porta do quarto. Código para a detonar: 86-61-92, medidas de sonho em corpo de delito.
Estamos no final de julho de 1995. Os tempos conturbados do PREC já fazem parte da história. Vive-se a euforia da Comunidade Europeia, chovem milhões de Bruxelas. O dinheiro dá para todos os luxos, até para montar um evento de moda com as "top models" mais badaladas do momento. Uma acima de todas as outras: Claudia Schiffer, a 'bomba' alemã, noiva do mágico David Copperfield, o arquétipo da mulher perfeita dos anos 90. Depois de ter imitado Brigitte Bardot numa campanha publicitária, chega a Portugal com pose de diva do cinema.
São precisos 15 mil contos (o equivalente hoje a 115 mil euros, considerando a inflação, quase 24 anos de trabalho de um português com o salário mínimo à época) para a convencer a desfilar uma dúzia de peças na primeira edição do Portugal Fashion, que celebra em 2015 o seu 20.º aniversário. Apesar da pequena fortuna do cachê, Schiffer aterra em Lisboa com rosto fechado, escondida atrás da longa melena de seda loira e dos óculos de sol. Farta de olhares e de comentários sobre uma hipotética gravidez, aborrecera-se logo na viagem de Concorde entre Nova Iorque e Paris. Sentado ao seu lado no avião para o Porto, o ministro da Indústria, Mira Amaral, não lhe consegue arrancar mais do que um sorriso amarelo. "Prazer em conhecê-lo", limita-se a dizer a manequim.
Segundo o Expresso, a "coincidência" do ministro ficar sentado ao lado de uma das mulheres mais desejadas da época foi preparada pelos organizadores, a Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE). Na véspera, fizeram chegar uma mensagem ao governante: "Esperemos que goste da hospedeira que lhe pusemos no avião". Vinte anos depois, Paulo Barros Vale, primeiro presidente da ANJE e mentor do Portugal Fashion, nega esta versão: "Foi mesmo uma coincidência. E não houve qualquer bilhetinho. Houve sim alguém que terá brincado com o ministro, dizendo-lhe que ia ter uma surpresa quando chegasse ao avião".
Os partidos da oposição suspeitam que o PSD aproveitara a presença de Schiffer e de outras supermodelos para promover um comício de Fernando Nogueira no Porto, em pré-campanha eleitoral para as legislativas desse ano. Especula-se sobre quem na realidade pagou a deslocação de Schiffer a Portugal. A versão que vinga é a de que o evento - que custou mais de 120 mil contos (equivalente hoje a mais de 920 mil euros) - foi patrocinado pelos ministérios da Indústria, com recurso a fundos comunitários, e do Comércio Externo, através do ICEP, com o objetivo de internacionalizar os têxteis e os criadores de moda portugueses.
"O setor têxtil era a principal indústria e o principal empregador do país, mas era notório que iria passar um mau bocado", recorda Barros Vale. Por isso, por ocasião do 9.º aniversário da ANJE, o empresário idealiza um evento pensado para ser "uma pedrada no charco". "Queríamos chamar a atenção da imprensa internacional para a capacidade da indústria portuguesa e daqueles que começavam a criar, mostrar que éramos mais do que fábricas de feitio".
Uma estrela pouco sorridente No Porto, Schiffer raramente se deixa ver em público e mostra poucos sorrisos; guarda-os para a conferência de imprensa e para a passerelle, onde desfila seis vezes, "ao som de aplausos e gritos de uma plateia de empresários e novos-ricos nortenhos", conta dias depois a "Visão". A alemã parte na mesma madrugada para Nova Iorque, via Londres, sem conhecer a cidade. Na memória, fica-lhe talvez a Foz do Douro, que espreita nas traseiras da Casa do Farol, onde decorre a passagem.
Carlos Santos, o mordomo do Sheraton, interrompe as férias só para atender Schiffer e companhia. Orgulha-se de ser o único homem a conhecer a supermodelo "ao natural". Nem os seguranças contratados pela organização podiam dirigir a palavra à diva da moda - limitavam-se a bater à porta sempre que esta tinha que sair para um compromisso. Santos, então com 28 anos, tem o privilégio de ver a musa sair do duche em roupão, quase como num anúncio publicitário. E, por momentos, despe o fato do discreto mordomo para ser apenas o homem com uma história boa de mais para não a partilhar. "Ficava-lhe mesmo bem..."
Fora do quarto, prevenindo que a escaldante loira possa incendiar o Porto, há uma vintena de bombeiros a acompanhar Schiffer, noticia o diário espanhol "ABC". O fundador do Portugal Fashion nega-o. "É outro dos mitos que se criou na época". A brasa alemã domina as atenções da centena de jornalistas portugueses e internacionais acreditados para o evento, mas ao Porto chegam outras três supermodelos: Helena Christensen, a morena dinamarquesa dos olhos de um verde cristalino que apetece mergulhar neles; Carla Bruni, a então loira italiana que ainda não conhecia Nicolas Sarkozy, nem se tinha dedicado às cantorias; e Elle Macpherson, a escultural australiana, conhecida por "The Body" (O Corpo) no tempo em que as manequins ainda tinham curvas. Recebem 10 mil contos cada.
Bruni afirma que é "um desafio interessantíssimo" desfilar em países e com designers diferentes dos habituais e Christensen é a única que fica no Porto para o dia a seguir ao desfile, com o namorado Peter Makebish. Mas é a estrela de Elle que mais brilha dentro e fora da passerelle. Na companhia do marido, Tim Jeffries, mostra-se sempre bem-disposta e brincalhona, distribui autógrafos e sucumbe à gula na hora de alimentar "O Corpo". "Comeu de tudo: tarte de frutas cheia de chantilly, vinho, lasanha, sanduíches enormes e montes de batatas fritas com ketchup", revela o mordomo pouco discreto, hoje a trabalhar no Brasil.
A longa cabeleira doirada de Elle é uma dor de cabeça para o hotel, que tem que comprar um secador de cabelo mais forte às nove da noite, e para muitos jornalistas, que na ânsia de verem Schiffer a confundem muitas vezes com a australiana, sempre que esta aparece sorridente em público a dizer "olá" em bom português.
20 contos para aceder à festa Uma semana depois dos Rolling Stones terem esgotado o estádio de Alvalade, é La Toya Jackson quem encerra a primeira edição do Portugal Fashion. "Queríamos trazer o Michael Jackson, mas percebemos que era muito caro", conta Barros Vale. "Depois, tentámos a outra irmã, a Janet. Também era muito cara. A LaToya foi a terceira escolha, custou-nos uns 2500 contos [na época, o "ABC" fala em 14500 contos, o que superaria o cachê da própria Schiffer]". De quinta a sábado, a irmã mais velha de Michael, longe de ser um modelo de cantora, só sai da suite para o concerto. Antes atua Pedro Abrunhosa, no auge da fama conquistada um ano antes com o seu álbum de estreia.
No meio do circo mediático, descrito por alguns como o triunfo do nacional-parolismo, poucos reparam na moda portuguesa. Mas entre os não convidados não falta quem esteja disposto a pagar 20 contos para ter acesso à festa, quase quatro vezes mais do que o preço dos bilhetes para ver os Stones. O evento gera pelo menos uma exportação. Macpherson apaixona-se pelo vestido com padrão de leopardo do estilista José Carlos (que viria a falecer em 2004) e, no final, compra-o. "I love your dress", escreve num cartão que entrega ao português.
"Houve na época um certo deslumbramento com o Portugal Fashion", admite o fundador do evento. "Nunca se tinha visto nada assim em Portugal. Não é normal um país periférico atrair as melhores manequins da altura e receber dezenas de jornalistas de publicações internacionais. Fomos arrojados, conseguimos agitar as águas na moda portuguesa e chegar lá fora, mas tenho pena que na imprensa os 'fait divers' tenham ganho protagonismo em detrimento da moda".
Fast forward. A 36ª edição do Portugal Fashion termina este sábado no Porto, sem supermodelos nem o fogo de artifício mediático da primeira vez, mas com quatro dias do melhor que se faz na moda em Portugal. Em julho, o evento sopra 20 velas, espera-se que sem perigo de incêndio ou ameaças de bomba.