Apesar de por cá entrarmos no novo ano debaixo de chuva e de, noutros pontos do Hemisfério Norte, a chuva e a neve enregelarem os dias e as noites, dúvidas não há de que 2023 fica para a história como o ano mais quente dos últimos 174 anos. E provavelmente dos últimos 125 mil anos. Pelo menos até agora.
Só entre junho e novembro bateram-se recordes nunca vistos e nas contas finais, o termómetro médio global subiu 1,4°C por comparação à média registada no ano de 1850. Porém, não podemos dizer que estamos a 0,1ºC da meta de 1,5 °C, definida como o limite para tentar travar consequências mais trágicas da crise climática. Para já, estamos a 0,3º com base nos modelos físico-matemáticos para períodos de 30 anos, que coloca o aquecimento médio global 1,2 °C acima do da época pré-industrial, segundo dados do programa europeu Copernicus. E é este valor que conta para as contas.
Aquecimento a acelerar
O que preocupa parte da comunidade científica é que o aquecimento global tem estado a acelerar mais do que era estimado. Um estudo coordenado pelo climatologista americano James Hansen (que, na década de 80 do século XX alertou para o efeito de estufa provocado pelas emissões de CO2) aponta para que o mundo esteja a caminhar de forma mais rápida para um aquecimento nunca visto no último milhão de anos. Para ele “o limite de 1,5 °C está morto”, já que as emissões de gases de efeito de estufa continuam a subir e o objetivo de cortá-las para metade até 2030 parece irrealista.
O texto saído da última Cimeira do Clima, realizada no Dubai (COP28), no início de dezembro, não permite contrariar este presságio. “É um avanço ter-se reconhecido no texto final a necessidade de transição energética para lá dos combustíveis fósseis. Mas são letras escritas num papel e não são vinculativas”, lamenta o geofísico Filipe Duarte Santos. E alerta para que “a situação geopolítica atual continue a aumentar a subsidiação aos combustíveis fósseis e não a transição energética”.
O catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) segue a linha de Hensen de que “o desequilíbrio do sistema climático se está a agravar e o aquecimento a acelerar”. E explica que “a climatologia atual não tem a capacidade de prever a intensidade dos fenómenos extremos que já se estão a viver”, porque os modelos físico-matemáticos que correm nos supercomputadores não a captam. Por isso, segundo Filipe Duarte Santos, “isto deixa-nos uma grande incerteza quanto ao futuro”.
Dois dos exemplos que revelam esta aceleração e imprevisibilidade, na sua opinião, são a diminuição registada da camada de gelo no mar da Antártida (cujo gelo marinho em setembro se encontrava com menos 1,5 milhões de km2 do que a média para a época do ano (uma área do tamanho de Portugal, Espanha, França e Alemanha juntas); e a área de floresta ardida no Canadá que mais do que quadruplicou face à média.
Também o físico da atmosfera Pedro Matos Soares não duvida de “temos vivido uma aceleração do aquecimento global à escala, mensal, anual e regional”, e explica que isso está relacionado com “a contínua subida de emissões globais de gases com efeito de estufa e com o recorde de concentrações de CO2 na atmosfera”. Estimam-se 40.9 gigatoneladas emitidas globalmente em 2023 e uma concentração de 418 partes por milhão em novembro. Tendo em conta as fragilidades de alguns modelos físico-matemáticos defende que se tenham em conta os cenários mais gravosos projetados pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC).
O investigador do Instituto Dom Luiz (FCUL) lembra que “o sistema climático é complexo e não linear” e daí que a intensidade dos eventos mais extremos possa não ser projetada pelos modelos, o que não lhes retira utilidade.
Sucessão de eventos extremos
Ao longo deste ano sucederam-se diversos eventos extremos, desde as inundações brutais na Líbia ou na China, que fizeram milhares de vítimas e obrigaram mais de um milhão de pessoas a abandonarem as suas casas; às ondas de calor que atingiram todos os continentes e tiraram a vida antecipadamente a milhares de pessoas.
A que atingiu a China equivale a um evento provável apenas a cada 250 anos. A cidade de Phoenix, no Arizona (EUA) esteve 31 dias seguidos com temperaturas de 43ºC; e em partes de Espanha, Grécia Portugal e Itália, os termómetros subiram acima de 45 ºC.
Só em Portugal assistimos a sete ondas de calor este ano, a última no outono, entre finais de setembro e meados de outubro, que atingiu 85% do território. E 46.4 °C foi a temperatura mais elevada medida em Portugal, numa estação em Santarém, a 7 de agosto.
Portugal sofreu incêndios, mas o equivalente a um terço da média da década anterior. Já na Grécia ardeu uma área equivalente ao tamanho da cidade de Nova Iorque. E no Canadá, as chamas consumiram 18 milhões de hectares de floresta, o que representa 4,5 vezes mais do que a média anual de floresta ardida no país na década anterior. Estes fogos libertaram 400 milhões de toneladas de carbono, o triplo do recorde anterior de 2014.
Secas extremas também afetaram os cinco continentes. Uma das mais graves acentua-se atualmente na Amazónia, levando a temer-se que se um quarto da floresta amazónica for devastada e a temperatura média subir 2,5 °C, a maior floresta do mundo pode entrar num ponto de não retorno e transformar-se numa savana.
Os oceanos também aqueceram mais do que a norma no último ano (Mais 0,5 °C), alimentando tempestades mais fortes. Exemplo disso foi o violento furacão Otis, que deixou um rasto de destruição em Acapulco, no México, em Outubro. A temperatura do mar na costa mexicana rondava então 31°C.
O que aí vem?
Alimentado pelo aquecimento global, o fenómeno meteorológico El Niño (que emergiu no Pacífico em junho) tem agravado esta sequência de eventos extremos e prevê-se que “continue a fazê-lo nos próximos seis meses, pelo menos”, diz ao Expresso o climatologista Carlos Câmara.
O investigador do Instituto Dom Luiz da FCUL aponta para dados do Met Office britânico que indicam que “2024 pode voltar a ser um ano de recordes de temperaturas, sobretudo devido a esta interligação entre a variabilidade das alterações climáticas e o fenómeno meteorológico El Niño que se podem exacerbar mutuamente”.
As incertezas prendem-se com o que se vai passar a partir de junho. “O sinal é fraco sobre o que se segue, havendo estatísticas com igual probabilidade de se seguir o fenómeno meteorológico El Ninã (de arrefecimento) ou um episódio neutro”.