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Sociedade

“Isto é uma democracia, as elites não deviam dirigir nada: o cargo público não muda quem sou, vou andar de transportes e trazer marmita”

Fernanda de Almeida Pinheiro é a nova bastonária dos advogados e garante que nunca houve alguém como ela: é de esquerda, formou-se numa universidade privada e em pós-laboral, pretende acabar com as ilegalidades nas grandes sociedades de advogados e admite ir até aos tribunais europeus para garantir aos seus colegas o acesso à Segurança Social. E sim: vai ganhar mais como bastonária do que ganhava como advogada
Bastonária da Ordem dos Advogados
NUNO FOX

Fernanda de Almeida Pinheiro surge nas escadarias atapetadas do velho edifício da Ordem dos Advogados sem o lenço colorido que se tornou a sua imagem de marca durante a campanha que a levaria à vitória nas eleições para bastonária. “Esqueci-me”, diz sem se rir. É que “lamentavelmente” o elegante adereço foi usado como uma arma pelos críticos e adversários. “É inconcebível que se chame a atenção da indumentária de uma mulher candidata a um cargo de direção quando ninguém falou da gravata ou do fato que os meus adversários usaram”. Mesmo que seja para dizer que os lenços são bonitos? “São comentários sexistas porque só acontece com as mulheres. O que é que isso interessa? Alguém pergunta a um homem onde é que se veste ou onde arranja o cabelo? É machismo puro. Nós vivemos numa sociedade patriarcal e o tema do lenço foi trazido à colação por machismo.”

Já sentiu esse machismo no tribunal?
Ultimamente não. Mas o machismo na advocacia é evidente. Acha normal que em tantos anos só três mulheres tenham sido eleitas? Ou que nas últimas eleições em sete candidatos só houvesse uma mulher?

Que ganhou.
Sim, mas a nossa sociedade e as próprias mulheres continuam a empurrar para si a obrigação de cuidar dos filhos e dos mais velhos. E quando assumem cargos como este ou arranjam alguém para lhes dar apoio ou têm de abdicar dessas funções públicas para cuidar dos filhos e da casa.

Teve de arranjar alguém que a ajudasse para poder assumir o cargo de bastonária?
Não, porque não sou casada nem tenho filhos.

Mas de que forma é que o machismo se sente nos tribunais?
Nas sentenças, por exemplo. Quer maior exemplo do que o acórdão do Neto Moura?

Isso não foi uma árvore na floresta?
Não. Basta ver as indemnizações atribuídas às vítimas de violência doméstica. Representei uma senhora que foi vítima de violência desde o namoro, durante mais de vinte anos. Pedimos 15 mil euros de indemnização e ela recebeu 7.500 e ainda teve de pagar as custas. A senhora, tal como a maioria da população, teve de pagar custas porque aufere um pouco mais do que o ordenado mínimo.

Mas quanto é que teve de pagar?
Logo no início, cerca de seiscentos euros pelo divórcio litigioso e pelo processo de regulação parental. Depois, 102 euros para se tornar assistente no processo. E, no fim, as custas do processo foram 400 e tal euros. E teve de me pagar. É caro. E é uma vítima de violência doméstica.

Mas qual é a solução para isso?
Um sistema progressivo de custas em que as pessoas vão pagando de acordo com os rendimentos como sucede com os impostos.

Mas os tribunais precisam do dinheiro das custas para funcionarem.
Os tribunais não têm dinheiro porque politicamente não interessa. Os meios humanos necessários ao funcionamento dos tribunais são vistos como um custo. E o custo é do Estado, é do cidadão. E o cidadão paga duas vezes porque paga através dos impostos e das custas.