Sociedade

Semanário: Médico que recusou helitransporte de doentes enquanto estava numa tourada investigado pelo MP e suspenso pela Ordem

Num caso, António Peças estava numa tourada, noutros recusou debatendo avaliação de outros médicos. Ordem decidiu suspensão por um ano, médico contestou

Foto: TIAGO PETINGA/LUSA

A história começa em 2017, quando António Peças, cirurgião do Hospital do Espírito Santo, de Évora (HESE), e especialista em emergência médica, prestava serviços nos helicópteros do INEM na cidade alentejana. Peças, responsável por aquele serviço do INEM, recusou por três vezes durante aquele ano o transporte de doentes em estado grave. Num dos casos, estava a assistir a uma tourada. Noutro caso, uma das doentes acabaria por falecer. É para apurar a responsabilidade criminal do médico que foi aberto um inquérito pelo Ministério Público, depois de vários inquéritos de caráter disciplinar nas entidades da saúde. 

Desde que foram conhecidos os casos, no início de 2019, António Peças tem estado a braços com processos disciplinares: primeiro no INEM, que cessou o contrato de trabalho que tinha com o médico; depois na Inspecção-Geral de Atividades em Saúde, que remeteu as suas conclusões à Ordem dos Médicos (OM) para novo inquérito sobre a violação dos deveres deontológicos; por fim, um processo de investigação criminal que corre no DIAP Regional de Évora. 

O Ministério Público confirma ao Expresso que o processo “está em fase de investigação, decorrendo diligências de recolha de prova pessoal e documental”.

Ainda sem saber o desfecho do processo na justiça, António Peças já luta contra uma suspensão de um ano decidida pela OM. Num despacho de acusação daquela entidade a que o Expresso teve acesso, depois de avaliados os factos, concluiu-se aplicar uma suspensão devido à “circunstância agravante da acumulação de infrações” praticadas pelo médico. Do lado das atenuantes está o facto de Peças não ter antecedentes, por “boa conduta anterior”, lê-se.

A relatora da Ordem, Maria do Céu Machado, não foi branda nas considerações sobre a conduta do médico, dizendo que, em alguns casos, as atitudes foram “eticamente muito censuráveis” e “contrárias à deontologia médica”. O caso mais grave para a OM foi a recusa do transporte dos doentes graves por “repetidas vezes” e “sem justificação”, quando os doentes “se encontravam em estado grave e era imperiosa a sua transferência para hospitais mais diferenciados”. 

E conclui que “o médico parece ter pensado mais na sua comodidade pessoal do que no interesse dos doentes, revelando uma enorme indiferença pela saúde destes ou, na melhor das hipóteses, uma flagrante incapacidade para avaliar a gravidade do estado dos doentes”.

Os casos dizem respeito a três situações típicas de transporte de doentes por helicóptero. No primeiro, em abril, o helicóptero do INEM foi acionado para transportar uma mulher de 37 anos, de Faro para Lisboa, com uma dissecção da aorta. Após uma primeira recusa, Peças seguiu para Faro uma hora depois para fazer o transporte, mas a situação da doente agravou-se e esta viria a falecer sem ser transportada. No mesmo ano, em maio, foi pedido o transporte para um doente de 82 anos com um AVC de Évora para o Hospital de São José. Por fim, num último caso, e também de Évora para Lisboa, Peças alegou estar doente com uma gastroenterite quando estaria a assistir a uma tourada, não tendo assim sido efetuado o helitransporte de um doente de 74 anos com uma hemorragia provocada por um trauma.

O inquérito do INEM considerou que era importante uma avaliação independente dos casos denunciados, com o objetivo de avaliar “o fundamento técnico das decisões” e se estas “comprometeram ou não o prognóstico das vítimas”. Contudo, essa análise não foi feita, e ao que o Expresso apurou o DIAP Regional de Évora pediu a peritos para fazerem esta verificação.

Sobre todos estes casos, António Peças não quis responder ao Expresso, por considerar que “nenhum processo está decidido e muito menos concluído”, mas exerceu o contraditório no processo da OM dizendo que se verificou “uma perseguição constante e sistemática” à sua pessoa e que, esse sim, deveria ser um assunto a ser investigado. Sobre os casos em apreço, diz que os factos investigados “nada possuem de compatível com a verdade” e que as denúncias “mais não revelam do que fantasia e ausência de lisura por parte de quem as inventou”.

Duplicação de horários

Além da recusa do transporte dos doentes urgentes, António Peças foi investigado internamente e está a sê-lo na justiça por registar trabalho em dois sítios ao mesmo tempo. De acordo com o despacho de acusação da OM, o cirurgião tinha registos no HESE e no centro de operações do INEM ao mesmo tempo, em 2017, e algumas situações semelhantes ainda em 2018. Há ainda sobreposições registadas com aulas dadas na Escola Superior de Enfermagem de São João de Deus. 

Perante os factos apurados, o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, citado no despacho de acusação da OM, diz que a sobreposição de horários pode consubstanciar uma “infração disciplinar, senão mesmo infração criminal, por eventualmente indiciar falsidade intelectual de documentos”. Uma conclusão que a OM assina por baixo. “Ou o médico mente e não trabalhou no HESE” ou então “esteve nas instalações do HESE, praticou atos médicos e não os registou”. E se tal aconteceu “o médico arguido terá violado as normas sobre registos clínicos”.