Sociedade

“Não podemos esquecer: somos enfermeiros, não operadores telefónicos”: o depoimento de quem trabalha no SNS24

Os enfermeiros estão em maioria entre os operadores e todos são “recibos verdes” – o serviço é fornecido ao Estado pela Altice. Estas são histórias de quem trabalha na linha a tempo inteiro ou como complemento. Pedro, enfermeiro de 23 anos, deixou de vez há uma semana os atendimentos: “Querem limitar-nos aos algoritmos, falta-nos autonomia”

Chegar, sentar, ligar o computador, pôr o auscultador, fazer log-in no sistema, atender a primeira chamada que aparecer. Sandrina Pereira nunca fez mais de oito horas seguidas, mas há colegas que vão bem para lá de um turno de trabalho. “Saem de noite e continuam de manhã”, diz a enfermeira de 29 anos. Começou a trabalhar no atendimento da linha da Saúde 24 há mais de um ano, em plena pandemia.

“Quando comecei, mais ou menos qualquer pessoa se podia candidatar. Havia um concurso aberto, tínhamos de responder a uma ou duas perguntas e depois éramos chamados para uma entrevista presencial num escritório da Altice.” O serviço da linha é contratado pelo Estado à empresa de telecomunicações, que fica responsável pela gestão e contratação de pessoal.

Atualmente, os enfermeiros representam a maioria dos funcionários. Há ainda médicos, psicólogos e farmacêuticos. “Precisavam tanto de gente na altura que não me pareceu que tenha havido grande seleção”, continua Sandrina. Foi em julho de 2021. “Enviaram-nos um email com as condições e pediam a quem estivesse interessado para responder de volta.” E Sandrina estava.

“Não é um trabalho difícil, o procedimento está todo no sistema mas ao mesmo tempo é complicado estar sentada todo o dia e ao telefone

Sandrina Pereira

Tinha acabado de sair da faculdade e sentar-se ao computador e ouvir as queixas de centenas de pessoas que telefonavam com sintomas de covid-19 era o seu primeiro emprego. Integrada na categoria de júnior, só triava utentes que diziam ter febre, tosse e alterações de paladar ou cheiro e dificuldade respiratória.

“Não é um trabalho difícil, o procedimento está todo no sistema mas ao mesmo tempo é complicado estar sentada todo o dia e ao telefone. Eu tenho que parar 10 minutos para apanhar ar. É mais complicado que do um turno de oito horas num centro de saúde como enfermeira. Até mesmo num lar de idosos, onde o trabalho é bem pesado. O facto de estar na mesma posição há muito tempo é complicado”, continua.

Sandrina começou por ir para o centro de atendimento do Porto quase todas as semanas. “Não sei se nem era quase todos os dias”, lança. Hoje não vai além dos quatro turnos por mês. Está a trabalhar como enfermeira a tempo inteiro numa ADC – Áreas Dedicadas Covid.

Os trabalhadores do SNS24 trabalham num regime de prestador de serviços: recibos verdes. “Enquanto sindicato não temos qualquer controle. É uma parceria público-privada. A Altice fornece o serviço, o Estado paga à instituição pelo serviço e não há negociação coletiva para esta área”, explica ao Expresso Jorge Rebelo, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. “É um trabalho de atendimento telefónico em função de protocolo em determinado tempo. Sei que antes da pandemia havia um número de horas máximo determinado.”

Um emprego extra

Pedro Ribeiro, de 23 anos, chegou ao atendimento da mesma forma que Sandrina, logo após terminar a licenciatura. “A facilidade de acesso era falada no nosso grupo de faculdade. É muito fácil dar arranque ao processo, basta preencher um formulário.” Teve três dias de formação teórica inicial, mais três de prática. “Basicamente era ficar sentado ao lado de um colega com mais experiência, ouvir a chamada e perceber como tudo funciona.”

A formação inicial que é dada a cada funcionário não é paga. Daí em diante o trabalho é pago à hora. Melhor, é pago à “hora ready”, ou seja, é pago pelo número de horas em que estão prontos a atender. O tempo de serviço é contabilizado pelos minutos em que estão ‘logados’ no sistema e a atender chamadas. Se desligam nem que seja para uma pausa, o tempo deixa de ser contado.

“Quanto mais chamadas mais dinheiro”

Pedro Ribeiro

Durante a semana em horário diurno é pago €8,10 por hora. Se for à noite ou durante o dia, mas ao fim de semana, acresce 25% (€10,13 à hora). Se o turno for numa noite de sábado ou domingo, então são mais 75% (€14,18). Além disso há ainda uma tabela de prémios consoante o número de horas trabalhadas. Por exemplo, alguém que tenha mais do que uma falta está de imediato excluído deste bónus. Se completarem 40 horas mensais são mais €50, enquanto se ultrapassarem as 80 pode receber mais €75. Se passarem para lá das 120 horas, o bónus é de €100.

“Quanto mais chamadas, mais dinheiro”, detalha Pedro, que começou como emprego a tempo inteiro e depois continuou como um trabalho extra. Chegava a fazer 15 turnos todos os meses. “Acho que os séniores estavam a ganhar um pouco mais do que um júnior, mas era pouca a diferença, não era isso que me faria continuar a ter aquele trabalho. Numa fase inicial o que se paga não é mau mas depois não compensa. Aquele não é trabalho que seja sustentável a tempo inteiro. Fisicamente e intelectualmente é muito cansativo.”

Os turnos que Pedro fazia variavam entre seis e sete horas, cinco dias por semana. “Para os mais novos poderia ser certamente um primeiro emprego, mas para pessoas com mais idade que trabalhavam ali era um emprego extra para ganhar dinheiro extra”, continua. “Ao final de uma semana notava o cansaço e percebia que o fim de semana não seria suficiente para descansar. Claro que afetava o meu trabalho, ao fim de três ou quatro horas a triagem que eu fazia já não era tão minuciosa.”

Embora a recibos verdes, os funcionários têm um horário fixo definido – antes de cada escala de cada mês é considerada a sua disponibilidade.

A falta de autonomia

De acordo com Sandrina e Pedro, é através de um programa que vão fazendo as questões ao utente e avaliando os sintomas. Recebem as respostas do outro lado e inserem-nas no computador, que avança e lhes dá o passo seguinte. Todas as instruções do que fazer são dadas pelo software, através de um algoritmo desenvolvido em específico para a SNS24.

“Somos enfermeiros, estudámos quatro anos, não somos operadores telefónicos”

Sandrina Pereira

Há uma semana, Pedro abandonou a linha. A dependência do algoritmo foi um dos motivos. “Os algoritmos podem não ser os mais adequados atualmente e não têm em consideração o que foi a formação dos enfermeiros ao longo da faculdade e isso limita-nos muito”, diz.

“Fazemos as coisas e depois o algoritmo dá-nos o que é aconselhado fazer, mas somos autónomos para alterar essa disposição final. Se disser que a pessoa deve permanecer em casa mas se na minha avaliação e interpretação da situação achar que deve ser vista por um médico, vou encaminhá-la para os cuidados de saúde”, especificou Sandrina, que admite haver lacunas que atrasam e dificultam o atendimento. “Seguimos o algoritmo porque tem tudo o que é preciso, mas estamos sempre com supervisão. Há um enfermeiro chefe que consultamos em caso de dúvida e sintomas explícitos.” E acrescenta: “Somos enfermeiros, estudámos quatro anos, não somos operadores telefónicos”.