A falta de meios digitais por parte dos alunos foi apontada como um obstáculo ou mesmo um impedimento ao ensino à distância quase desde o início da pandemia em Portugal, mas o Ministério da Educação (ME) não só começou a resolver o problema tarde, quase um ano depois de as escolas terem encerrado pela primeira vez, como o fez recorrendo a fundos comunitários, optando por gastar quase todo o dinheiro destinado à pandemia com equipamentos de proteção individual.
As conclusões são da auditoria que o Tribunal de Contas (TC) fez ao ensino à distância e à digitalização nas escolas durante a pandemia, com o objetivo específico de avaliar se o ME assegurou que todos os alunos do ensino básico e secundário, que são 1,2 milhões no total, tivessem acesso ao ensino à distância durante a pandemia. E o que se percebe é que, se houve algumas melhorias — de sublinhar tendo em conta o pouco tempo que as escolas tiveram para se adaptar ao novo regime de ensino, tendo recebido as primeiras orientações do Ministério da Educação para o desenvolvimento dos planos para o ensino à distância duas semanas depois de as aulas presenciais terem sido suspensas —, também houve muitos aspectos negativos.
A resposta do Governo foi “tardia” em termos de disponibilização de meios digitais, e o problema ainda não está, além disso, resolvido — dos alunos a quem foi identificada essa necessidade, mais de 60% ainda não tem acesso a meios digitais, prevendo-se que isso aconteça só no próximo ano letivo.
Aliás, a falta de meios digitais por parte dos alunos, que incluem computadores, tablets, routers e ligação à Internet, é identificada no relatório como o “obstáculo mais significativo ao ensino à distância”. Só em 16 de julho de 2020, ou seja, no final do ano letivo 2019/2020, o Governo autorizou a realização da despesa para a aquisição de meios digitais para as escolas — onde as plataformas digitais não eram utilizadas de forma “generalizada” antes da pandemia e havia, sobretudo, “computadores obsoletos e sem ligação à Internet” — portanto “sem impacto” no ano letivo transacto, quando a pandemia obrigou, pela primeira vez, à suspensão das aulas presenciais nas escolas, e à implementação do ensino à distância. Até aí, a disponibilização de material tinha sido assegurada sobretudo pelas autarquias, que intervieram na aquisição de meios digitais para alunos e no “acesso a pontos de rede nas suas instalações” para que os alunos pudessem assistir às aulas online, e por particulares e empresas, que ofereceram meios digitais a alunos com “dificuldades económicas”, refere o TC no relatório.
Meios digitais chegaram tarde às escolas
Quando os alunos do ensino básico e secundário voltaram às aulas, em setembro, para o ano letivo 2020/2021, o Governo já tinha aprovado a realização da tal despesa, no valor de 386 milhões de euros, para a aquisição de 1,2 milhões de meios digitais, mas apenas uma ínfima parte dos alunos chegou a janeiro deste ano com computador ou outros meios. No final deste mês, “encontrava-se ainda no início a distribuição aos alunos beneficiários da ASE [Ação Social Escolar]”, tendo sido distribuídos, até àquele momento, 26.749 meios, suprindo assim as necessidades de apenas 11,4% destes alunos. A mais de 60%, só chegará no próximo ano letivo. Segundo um estudo do Conselho Nacional de Educação, aqui dissecado, ainda faltam 600 mil computadores nas escolas e só em 2022 a promessa do Governo de distribuir computadores a todos os alunos do ensino básico e secundário ficará cumprida.
Antes da publicação do relatório, o TC ouviu as várias entidades visadas no documento, de modo a respeitar o princípio do contraditório, tendo o ME respondido, nesta situação em concreto, que no mês de janeiro de 2021 “as escolas já dispunham da quase totalidade dos cem mil computadores e dispositivos de conetividade”, e que se estes ainda não tinham chegado aos alunos foi porque “entre o momento de entrega dos equipamentos aos seus beneficiários finais e o registo administrativo dessa entrega mediaram, muitas vezes, vários dias, possivelmente semanas, tendo em conta as múltiplas tarefas a cargo dos serviços administrativos escolares”.
Também no final do mês de janeiro, existiam ainda 75 escolas sem serviços de ligação à Internet disponibilizados pelo ME, diz ainda o relatório, embora já se registasse “desde o segundo semestre de 2020 uma evolução na ligação à Internet e à banda larga nas famílias com crianças até aos 15 anos”.
Além de tardio, o investimento em meios digitais dá-se com fundos comunitários, no âmbito da medida “Universalização da Escola Digital”, que consta do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) e para a qual foi aprovado um investimento de 400 milhões de euros na compra de computadores, conectividade e licenças de software para as escolas, entre outras prioridades. Para o futuro, o Governo conta com o Plano de Recuperação e Resiliência para reforçar essa verba, que prevê um investimento de 559 milhões de euros na escola digital.
Área em que o ME também se atrasou foi na formação dos professores, que se manteve “crítica”. Muitos professores com “dificuldades no ensino à distância” através de plataformas digitais chegaram ao final do ano letivo 2019/2020 sem formação, o “que limitou a sua utilização em algumas escolas”. A adaptação ao regime de ensino à distância exigiu, de resto, um grande “esforço” por parte dos docentes, que tiveram de conciliar as suas tarefas habituais, “por vezes sem horários definidos”, com a “aplicação de procedimentos administrativos e gestão de reorganização das aulas e de higiene e segurança”. A falta de meios digitais também foi um problema para os professores, que se viram obrigados a utilizar meios próprios para lecionar a distância — meios que “que são partilhados com elementos do agregado familiar” e com “deficiente ligação à Internet devido à localização da área de residência ou às condições precárias do alojamento” no caso dos professores deslocados. As despesas com os dados móveis foram, em muitos casos, asseguradas pelos próprios.
Governo investiu sobretudo em equipamento de proteção individual
O que não foi tardio, nem parco, foi o investimento do ME na compra de equipamento de proteção individual — o relatório do TC diz mesmo que as despesas orçamentais da educação com a pandemia resumiram-se, sobretudo, à aquisição desse material. Dos 3,529 milhões de euros gastos no ano letivo 2019/2020, a quase totalidade desse valor (3,503 milhões) serviu para a compra de máscaras, gel desinfetantes, viseiras, aventais e luvas, e 20 milhões foram gastos no programa #EstudoEmCasa, que permitiu a alunos dos ensino básico e secundário assistir a aulas em casa através da televisão e outras tecnologias.
No ano letivo seguinte, verificou-se o mesmo: dos 11,454 milhões de euros de despesa decorrente da pandemia, 11,400 milhões foram gastos em equipamento de proteção individual para alunos, professores e auxiliares e três milhões no programa #EstudoEmCasa. Em materiais de apoio, que incluíram computadores e software, foram gastos 51 milhões de euros.
Os riscos do ensino à distância
A auditoria do TC permitiu identificar vários riscos associados ao ensino à distância, como o risco de desigualdade, risco de falta de assiduidade — até pela “inexistência de indicadores para medir o abandono escolar”, que o TC identificou num relatório de 2020 mas continua mas “não foi entretanto superada” — risco de perda de aprendizagens, considerado o “mais significativo”, e risco de “disrupção no processo avaliativo”, uma vez que os resultados dos exames no ano letivo 2019/2020 não são comparáveis aos de anos anteriores. São os alunos “mais novos, a finalizar ciclos escolares e com necessidades especiais” que correm mais risco.
Por esta e outras razões, são deixadas recomendações ao ME, entre elas a concretização do programa de investimentos para a digitalização das escolas, a elaboração de um plano estratégico de substituição dos meios digitais, o aperfeiçoamento do sistema de gestão escolar prevenindo o reporte tempestivo de informação em situações de emergência e, finalmente, o aperfeiçoamento do sistema de gestão e controlo de meios digitais para prevenir “a duplicação de apoios”, uma vez que durante o ensino à distância “não foram implementados procedimentos” para prevenir essa situação, “o que retira eficácia à sua distribuição prioritária aos alunos mais carenciados e aumenta o risco de desperdício de dinheiros públicos”.