Na padaria e moagem Gleba, em Lisboa, o tempo é uma coisa muito importante. Por isso é tratado com respeito. Cada minuto conta, não se apressando o processo de fermentação natural – a massa repousa 24 horas inteirinhas nos cestos de vime, antes de cozer – e nenhum pão sai do forno sem a crosta estar escura e crocante, no ponto ideal.
O resultado é um aroma inconfundível, a pedir manteiga, e prateleiras inteiras de pura tentação, seja em forma de broa, belos pães muito redondinhos ou exemplares robustos, mais compridos. Tal e qual como Diogo Amorim sonhou.
Depois do pão, o que salta à vista é a juventude do mentor e fundador da Gleba. Diogo tem apenas 23 anos, cresceu portanto com uma geração já habituada às carcaças e à massa trabalhada nas panificações industriais, à base de cereais importados, sem memória do sabor que se dedicou a procurar incansavelmente.
Porquê, então? “A minha paixão pela gastronomia em geral vem de pequeno e é basicamente extensível a tudo o que se come”, explica. Daí a formação em alta cozinha (que inclui um mestrado em Ciências Gastronómicas) e um percurso que o levou a passar por vários grandes restaurantes, como o conceituado Fat Duck, em Inglaterra. Foi aí aliás que começou a interessar-se pelo pão de outra maneira, considerando “o seu valor cultural, histórico e gastronómico”.
“Envolve um minimalismo que surpreende, porque apesar da aparente simplicidade na produção, proporciona uma experiência verdadeiramente interessante, incluindo do ponto de vista sensorial”, afirma Diogo. Como o vinho, ao fim e ao cabo, acrescenta, dado que ambos têm na origem uma matéria-prima simples, que, “transformada, dá origem a um produto complexo”.
Ao regressar a Portugal, já depois de passar também pelo restaurante Vila Joya, Diogo voltou literalmente à terra, para dar forma ao seu projeto. Tinha consciência que o pão perdera no nosso país a diversidade de antigamente, submetido “à uniformização das matérias-primas e das técnicas”, por isso começou por investigar seriamente o tema. Entre leituras e o universo online, percebeu que era preciso ir ao encontro dos que guardavam os segredos dos bisavós.
FALTA DE MATÉRIA-PRIMA
Viajou pelo país inteiro à procura dessas pessoas, na esperança de encontrar quem, em aldeias remotas, ainda trabalhasse as farinhas à moda antiga, mas a primeira surpresa foi verificar como o processo de fazer pão se “industrializou em toda a parte”. “Encontrei quem o amassava à mão, mas todo o restante processo se perdera.”
Os cereais tipicamente nacionais também foram abandonados. “As pessoas passaram a associar o pão escuro, como o de centeio em Trás-os Montes, aos tempos duros que queriam esquecer, privilegiando o pão branco, leve e ligeiramente adocicado” que os tempos modernos lhe trouxeram.
Esbarrou assim no primeiro obstáculo: encontrar a matéria-prima de que necessitava, dado os agricultores terem abandonado a produção dos cereais tradicionais.
“Foi difícil”, reconhece Diogo Amorim, recordando o trabalho iniciado há dois anos. Mas, com esforço - “os agricultores olhavam para mim como se fosse louco, sem perceber de onde me vinha semelhante ideia” - estabeleceu laços com pequenos produtores, garantiu-lhes o escoamento dos cereais colhidos e avançou posteriormente para contratos onde assumia o compromisso de “lhes comprar os stocks a preço justo”.
Garantiu assim o fornecimento do antiquíssimo trigo barbela, que deu origem a um dos seus pães-referência, o centeio da variedade ‘verde’ ou o milho que agora lhe chega das “profundezas das Terras de Santa Maria”, no Minho.
FORNADAS NO TELEMÓVEL
Os passos seguintes foram garantir a moagem em mó de pedra tradicional, para que as farinhas possam ser usadas frescas, quando é mais rico o seu sabor; e o aperfeiçoamento das receitas, todas usando uma percentagem da chamada massa velha.
São suas as de todos os pães vendidos pela Gleba, ainda que agora a padaria já conte com uma equipa alargada, de 18 pessoas, que garantem o seu funcionamento mesmo que Diogo não esteja. Apenas com uma ressalva: o proprietário recebe no telemóvel fotos de todas as fornadas concluídas ao longo do dia. “A experiência já me permite identificar eventuais problemas só ao olhar”, pelo que o controlo de qualidade funciona.
Por estes dias, está em vias de adquirir uma segunda carrinha para garantir a distribuição, área em que se lançou apenas em setembro, depois de sentir a pressão para ter os seus pães em restaurantes e noutros pontos de venda (são agora vários, em Lisboa, com as entregas a representarem 20% da faturação). O negócio tem crescido, muito para lá do perfil de cliente que antecipara.
“Acreditei que tinha mercado, por ver que crescia a preocupação com a alimentação saudável e com a sustentabilidade, além de a gastronomia estar a ser valorizada, mas a aceitação ultrapassou as minhas expectativas” , reflete Diogo Amorim, que vende para todo o tipo de clientes.
“O pão é mesmo um alimento democrático, sempre o foi”, conclui, antes de traduzir o sucesso em números: aos sábados saem dos fornos da Gleba 900 quilos de pão.