O mais jovem Presidente da I República casou-se com uma mulher mais velha quando tinha apenas 23 anos, no mesmo ano que retomou o curso de Matemática que interrompera para frequentar a Escola do Exército, na tentativa de encontrar uma carreira que lhe desse sustento.
Uma pneumonia levara-lhe o pai quando tinha 11 anos, sendo muitas as dificuldades económicas que a família enfrentou nos tempos seguintes. Não fosse a ajuda da madrinha Claudina e, provavelmente, o minhoto Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais nunca se teria inscrito na Universidade de Coimbra e sido vice-reitor dessa instituição.
Foi na vida militar, em Vendas Novas, que conheceu o republicano Brito Camacho, com quem virá a alinhar nas fileiras do Partido Unionista. O homem que Fernando Pessoa cantou como “Presidente-Rei” – NESTE POEMA escrito dois anos depois da sua morte – foi nomeado ministro do Fomento no I Governo Constitucional da República, em 1911, assumindo posteriormente a pasta das Finanças.
No ano seguinte, foi nomeado representante diplomático de Portugal em Berlim, com a missão de legitimar o novo regime no centro de uma Europa que ainda era maioritariamente monárquica. Regressou ao país em 1916, depois de a Alemanha declarar guerra a Portugal.
GOLPE COM FARDA ALHEIA
Os quatro anos que passou na Alemanha determinam a aura de diferença com que chega à chefia do Estado, em dezembro de 1917.
O diplomata que frequentara salões e receções no centro da Europa voltou a vestir a farda para liderar o golpe de 5 de dezembro. Dois meses depois, o “Diário de Notícias” perguntou ao novo Presidente se mandara fazer uma farda nova para liderar o golpe que instaurou a República Nova [cf. Alice Samara, autora da fotobiografia de Sidónio publicada pelo Museu da Presidência]: “Havia 20 anos que eu não vestia a farda. E como, se eu a mandasse fazer aí, daria na vista, o Feliciano da Costa emprestou-me um calção e um dólmen de linho, a que se puseram os galões de major. O capote era de meu filho, que é aluno da Escola de Guerra, e a que mandei também pôr os galões. Vesti-me num quarto em frente à Escola de Guerra”.
1917, O ANO DE TODOS OS PRODÍGIOS
A morte e a fome pairavam como céu de chumbo, num ano em que Portugal teve cinco governos, entrou na frente europeia da Grande Guerra, e o tifo matou quase dois mil portugueses.
O clero, fortemente acossado pela lei da separação da Igreja e do Estado, agarrou as visões dos pastorinhos na Cova da Iria, como o anunciar de um novo tempo que chegaria com a oração pelo fim da guerra, e contra a instalação de um estranho mundo que começara a desenhar-se com a viagem de comboio de Lenine para instaurar o poder dos sovietes com o apoio/conivência dos alemães, que tinham como principal objetivo tirar a Rússia do conflito, desferindo assim um golpe nas forças aliadas. [Recorde-se que Lenine saiu de Zurique a 9 de abril num comboio selado e chegaria a Petrogrado/São Petesburgo uma semana depois].
E DE TODOS OS POPULISMOS ‘AVANT LA LETTRE’
A República Nova de Sidónio surge neste contexto. Sidónio, o homem que veio de fora, alheio à terrível decisão que levara Portugal para a guerra que matou mais de oito mil portugueses, surge como salvador messiânico “longe da fama e das espadas /Alheio às turbas”, como escreveu Pessoa.
Sidónio ocupa a Rotunda (praça do Marquês de Pombal em Lisboa) entre 5 e 8 de dezembro, “apeando os democráticos do poder, contando tanto com o apoio, como com a expectativa benévola de vários grupos e agentes sociais, de entre os quais o movimento operário tratado com dureza” pela governação de Afonso Costa, explica a historiadora Alice Samara: “Inicialmente o golpe parecia ser apenas uma mudança de turno governativo, mas depressa se percebeu que, para Sidónio Pais, era a República Nova”.
AS SOPAS DO SIDÓNIO
Governou 374 dias, até ser assassinado, na estação do Rossio, em Lisboa, quando ia apanhar o comboio para o Porto. Morto Sidónio, sobreviveu o sidonismo, essa “encruzilhada entre mundos, com características políticas velhas e outras inovadoras, regime [presidencial] original que foi procurando e experimentando diferentes soluções”, diz Alice Samara.
A memória do Presidente perdurou quase como um mito, em parte graças ao trabalho desenvolvido pela Associação 5 de Dezembro, criada em 1918 para ajudar os mais carenciados, que eram muitos [recorde-se que o jornal “O Século” já distribuía sopa aos pobres].
“A faceta mais visível desta política é a distribuição de alimentos [a conhecida ‘Sopa dos pobres’ ou ‘Sopa de Sidónio’]”, como se lê na sua biografia no site do Museu da Presidência.
A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM
Sidónio – que, para além de ser o mais jovem de todos os PR da I República, era bonito, tinha boa presença e criou uma viva impressão nas mulheres da elite lisboeta – cultivou a imagem do líder “generoso e amigo dos mais desfavorecidos. O governo também dedicou grandes somas no combate às duas epidemias que atingem o país em 1918 – a febre tifoide e a gripe pneumónica – que proporcionam a Sidónio várias visitas a hospitais [cf. biografia M.P.]”, que estão devidamente documentadas e fotografadas.
Os restos mortais do carismático líder da República Nova ficaram inicialmente no Mosteiro dos Jerónimos, sendo posteriormente trasladados para o Panteão Nacional pelo Estado Novo; durante muitas décadas, um conjunto de velhas senhoras velou para que existissem sempre flores junto do túmulo de Sidónio.
O CRIME, OS JORNAIS E OS ASSASSINOS
A rádio só chegaria na década seguinte, mas os jornais, que na época imprimiam cerca de 300 mil exemplares por dia (só em Lisboa), fizeram relatos detalhados sobre o crime que vitimou Sidónio às 23h45 de sábado 14 de dezembro de 1918. Sabemos que o primeiro tiro não atingiu o Presidente e que este ainda foi transportado com vida para o hospital de São José, vindo a falecer numa maca, na sala de banco, pouco depois de ali ter chegado.
Os jornais forneceram nomes, profissões e moradas dos presumíveis assassinos – Luiz Furtado Saraiva, que falhou o primeiro tiro, e o alentejano José Júlio Costa, que na véspera tinha pernoitado no Hotel Internacional, a poucos metros da Estação do Rossio – e de todos os que foram detidos.
Maria dos Prazeres Martins Bessa, a mulher com quem Sidónio se casou em fevereiro de 1895, e que com ele teve cinco filhos, continuou a viver em Coimbra quando o marido assumiu a chefia do Estado. Nunca participou em qualquer ato público nesse período. Entrou pela primeira e última vez no Palácio de Belém um dia depois da morte do marido, para velar o corpo, que estava em câmara ardente na divisão que é atualmente conhecida como “Sala dos Embaixadores”.
À semelhança dos seus antecessores, o Presidente Sidónio viveu no anexo do Palácio de Belém, e PAGOU RENDA como eles
Dez anos depois da sua morte, em 1928, a Ditadura Militar concedeu à viúva de Sidónio uma “pensão de sangue” na razão de 50% do vencimento de um “general com mais de 5 anos” de graduação no posto. Olga Manso Preto, filha de Sidónio, também teve direito a uma pensão igual à de Maria dos Prazeres Bessa Pais
Sidónio já tinha sobrevivido a um atentado, no dia do primeiro aniversário do golpe que liderara, quando condecorava os sobreviventes do navio de guerra “Augusto Castilho”. Não teve a mesma sorte nove dias mais tarde, mas o seu consulado viria a marcar grande parte do século XX português. Para Alice Samara, “foi uma experiência política premonitória” de autoritarismo ditatorial, que congregou uma amálgama de republicanos descontentes com o curso dos acontecimentos, monárquicos, e católicos. Anos mais tarde, houve sidonistas que aderiram ao Estado Novo, outros permaneceram republicanos e democratas.
“O sidonismo foi uma experiência política premonitória sem ser ainda o fascismo. Nos anos vinte, a memória de Sidónio Pais serviu para a defesa de correntes presidencialistas, de predomínio e fortalecimento do executivo. Não podemos deixar de olhar o sidonismo na conjuntura das transformações políticas decorrentes do conflito mundial e salientar o impacto que a revolução russa de 1917 teve nos sectores mais conservadores do espetro político e nas suas primeiras reações ao que lhes parecia ser uma temível experiência subversiva”, explica Samara.
O homem que poderia ter tido uma longa vida como lente de Matemática da Universidade de Coimbra foi uma “figura política central do regime” republicano e de tudo o que se seguiu: “Vestiu a farda e assumiu uma persona pública: bélico, marcial, mas simultaneamente caridoso, fazendo-se fotografar debruçado sobre os tifosos, ou nos lanches com as crianças”, diz a historiadora Alice Samara.
O corpo do “Soldado-rei que oculta sorte/ Como em braços da Pátria ergueu, / E passou como o vento norte / Sob o ermo céu” foi embalsamado e sepultado nos Jerónimos uma semana depois de ter sido morto numa cidade que, em menos de 11 anos, assistiu ao assassínio do rei, do príncipe herdeiro e do Presidente da República. Retrato de um Portugal sem brandos costumes.