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Teatro

“Miquelina e Miguel”: memória, demência e amor entre mãe e filho

Espetáculo de Miguel Pereira sobre cumplicidade, ternura, muito riso e repleto de momentos inesperados, como a vida, que escapa ao controlo de ideias de perfeição, para ver no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, de 5 a 7 de julho

Miguel Pereira faz um dueto com a mãe, Miquelina, que tem vivido os últimos anos com um diagnóstico de demência
Joana Linda

Claudia Galhós

Há um traço peculiar na dança que Miguel Pereira faz desde finais do século passado: não é o humor que lhe é característico, mas é principalmente uma ternura que atravessa cada criação como um acto de partilha, desde logo com os criadores, uns artistas profissionais outros amadores, com quem tem colaborado. Desta vez, leva esse vínculo mais longe, ao fazer um dueto com a mãe, Miquelina, nascida em 1935 e que vem vivido os últimos anos com diagnóstico de demência. “Miquelina e Miguel” é um espetáculo de cumplicidade, ternura, muito riso e repleto de momentos inesperados, como a vida, que escapa ao controlo de ideias de perfeição, eficácia ou a qualquer plano que queiramos fazer. Ao início, ficamos a saber que Miquelina nasceu perto de Tomar e que aos cinco anos foi para Moçambique com os pais e irmãos. Aí encontrou o amor, casou, e teve dois filhos, Miguel e Magda, que vieram para Portugal, viver com familiares, em 1976, em resultado da independência de Moçambique. Os pais só chegaram quatro anos depois.

A história de família partilhada no início de um ensaio, é ainda matéria em processo. Até à estreia tudo pode mudar. Até porque, por mais que Miguel sempre tenha trabalhado numa abordagem da dança que escapa à convenção desta arte, nesta peça, a vontade e as reações da mãe imprimem um grau ainda maior de imprevisibilidade. Miguel sabia que não queria fazer um espetáculo documental sobre a vida e a relação dos dois. Tem consciência de que esse é um recurso muito presente nas artes performativas contemporâneas. Para o ano faz 60 anos e não tem dúvidas quanto ao significado deste “Miquelina e Miguel”: “A criação artística está ligada a esse momento de partilhar a vida, de partilhar quem somos, mesmo o que escondemos ou não queremos mostrar. A vida é isso, não é o mundo perfeito em que queremos acreditar.” É isto que leva para cena. A ideia de criar esta peça nem surgiu dele, surgiu de Laura Lopes, programadora de artes performativas do TBA, depois de ver um pequeno vídeo da mãe de Miguel a dançar numa das palestras que o coreógrafo deu sobre a sua história da dança. O desafio veio desencadear um desejo que tinha há algum tempo, nascido com a descoberta de uma faceta da mãe que desconhecia e que apenas se deu a ver com a demência. “Vi uma mulher que não conhecia, porque uma série de filtros desabaram”, diz ainda Miguel ao Expresso. A mãe, criada numa família conservadora, educada para mostrar o melhor de si em público, era resguardada até nas demonstrações de afeto com o filho, com o pudor do toque. Antes desta mudança, Miguel recorda alguns sinais de um humor e uma personalidade “um bocadinho fora da caixa”, mas sempre reprimida. Tudo isso mudou com a demência. No ensaio, Miquelina diverte-se, diz piadas ao filho, troca-lhe as voltas, mostra-se rebelde e não resiste a dançar quando ouve certas músicas. Também canta o ‘Ave Maria’, de Schubert, mal escuta os primeiros acordes. Ainda assim, é apenas uma pequena mostra do que se divertem os dois, nos últimos anos, aos domingos, quando Miguel vai a casa da mãe almoçar e depois passam a tarde a inventar canções e dançar e a jogar às escondidas e a rir. Nesta mãe descobriu-se a si. Reconheceu uma identificação entre os dois. “A minha maneira de ser tem uma origem. ‘Eu sou maluco’, como ela diz, por alguma razão, por alguma influência, também por esta herança dela.” A questão da memória, que nesta peça tem particular importância, não é assunto simples. O esquecimento de si traz outras memórias e algumas delas ressurgem com tanta vivacidade que não há nada que as apague. Ele põe o filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, de que Miquelina tanto gosta, e ela parece que foge para dentro da tela e vive uma relação só dela e de Chaplin. Se começa a dar o tom da canção ‘Ó Malhão Malhão’, ela começa a dançar e a cantar. O corpo não esqueceu nada disso. A mãe vive em constante fantasia. Miguel lembra-se de lhe terem dito que a demência é a doença da felicidade. Mas muitas brincadeiras que fazem os dois, sozinhos, na intimidade da casa, que levam mais longe uma liberdade de expressão, até escatológica, não acontecem na sala de ensaio e provavelmente não vão chegar ao palco. Porque a Miquelina não esquece uma etiqueta de comportamento que deve cumprir quando está em público. E esse é um dos desafios com que Miguel se tem deparado: “Como é que eu consigo transpor para o espaço cénico algo que acontece no privado espontaneamente, liberto de qualquer constrangimento de ela se sentir observada. Sei que ela tem isso, que o comportamento dela muda a partir do momento em que está em público. Gostava de a mostrar como ela é.”