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O teatro é “também uma escola de vida”: Podem as técnicas do teatro ser usadas para nos ajudar com as ‘máscaras’ que usamos no dia a dia?

Do ritual ao teatro e ao dia a dia, a palavra “máscara” tem sido usada num espectro muito amplo para se referir a objetos físicos ou, enquanto metáfora, para designar papéis sociais. Que ligação têm as máscaras vindas do ritual e do teatro com as máscaras do dia a dia? Serão as técnicas do teatro úteis às máscaras do nosso quotidiano?

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"Ao longo do teu caminho conhecerás, todos os dias, milhões de máscaras e pouquíssimos rostos”, escreveu, um dia, Luigi Pirandello, Prémio Nobel de Literatura em 1934.

O uso de “máscaras” ou “filtros", "mediante as pessoas com quem vamos convivendo” é mesmo “uma necessidade”, segundo explica João Fernando Martins, psicólogo clínico. E uma necessidade “inata”.

“Ocultamos informação, falamos sobre determinados assuntos ou não falamos sobre determinados assuntos, não transparecemos determinadas fraquezas ou transparecemos determinadas fraquezas, mediante as pessoas que estão à nossa volta, a confiança que temos com elas ou o tipo de papel que elas representam na nossa vida”, aponta.

Algo que pode, de acordo com o psicólogo, “ser importante para o indivíduo interagir de uma maneira mais eficaz em determinado contexto”. “Se fôssemos à genuinidade pura, se calhar, não conseguiríamos conviver em sociedade da maneira tão eficaz como hoje conseguimos”, diz.

As máscaras materializam-se, por exemplo, “ao nível da expressão facial, da maneira de estar ou das formas de apresentação”. E a necessidade de as colocar surgirá em “qualquer situação social em que a pessoa sinta que terá alguma coisa a perder se se manifestar ou mostrar da maneira mais genuína possível”.

Uso alargado do conceito nas ciências sociais vem da Sociologia dos anos 50

Serão as chamadas, na Sociologia, “regiões de fachada”, refere Ricardo Seiça Salgado, investigador nas áreas de Antropologia e Performance Arte. O conceito, equiparado às máscaras sociais, é de Erving Goffman, que introduz também o de “zonas de bastidores”. “Num espaço privado, há um relaxamento dos papéis públicos e podem-se largar certos procedimentos”, explica Ricardo Seiça Salgado. Sejam a maneira como cumprimentamos as pessoas, a forma de estar ou aquilo que vestimos.

Zygmunt Bauman, um outro sociólogo, que “olha a sociedade como uma espécie de espetáculo em que temporariamente as pessoas usam essas regiões de fachada”, fala em “comunidades cabides”, diz o investigador. “Um banqueiro que vai a um concerto de metal à noite, temporariamente vai ao banco e usa gravata, fato, camisa, com o seu penteado de risco ao lado perfeitamente definido, mas mal chega a casa, tira essa vestimenta e vai vestir a sua camisola preta de Metallica com calças rotas”, exemplifica.

Este é um uso alargado do conceito de “máscara” que vem dos “anos 50”, esclarece o investigador, quando “alguns sociólogos fazem a analogia do drama, como se tirassem os conceitos teóricos do teatro para analisar a sociedade”.

Das máscaras do teatro às máscaras do dia a dia

Filipe Crawford, ator e pioneiro na introdução da Técnica da Máscara em Portugal, diz que das técnicas do teatro, o que poderíamos tirar para o dia é, essencialmente, o ter “consciência daquilo que somos e o pensar nas ações que fazemos”. O teatro é “também uma escola de vida”, diz, que pode “ensinar ou dar algumas ferramentas para a vida” e, sobretudo, ajudar os indivíduos a “serem melhores pessoas”.

A Técnica da Máscara, inspirada no teatro antigo grego e no Renascimento, em particular na Commedia dell’Arte, tem origem no início do século XX, com o francês, Jacques Copeau.
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Se o ator, que recentemente publicou o “Manual de Técnica da Máscara”, um guia para o estudo e prática do Teatro de Máscaras, escrevesse um breve manual da Técnica da Máscara para o quotidiano, o primeiro ponto que abordaria, diz, seria a “consciencialização”.

“O objetivo principal de um ator é precisamente tentar conscientizar e libertar-se dessas máscaras que pode usar na sua vida quotidiana e informal”

Esta é uma preocupação que qualquer ator tem: “tomar conhecimento de si próprio, do seu corpo, da sua forma de andar, de olhar, da sua expressão, dos seus tiques, das suas idiossincrasias, para poder utilizá-las ou extraí-las, quando está a representar a personagem”. Afinal, repara, “o objetivo principal de um ator é precisamente tentar conscientizar e libertar-se dessas máscaras que pode usar na sua vida quotidiana e informal”.

“Reconhecer que utilizamos estas máscaras e reconhecer que as utilizamos muitas vezes com um determinado propósito” será, segundo o psicólogo clínico João Fernando Martins, precisamente uma forma de evitar que “a utilização em excesso deste tipo de estratégias” de disfarce no quotidiano possa “colocar em causa questões como a perceção que o indivíduo tem sobre a sua genuinidade, o tipo de estima que tem sobre si mesmo, o tipo de compreensão que tem sobre as suas próprias capacidades ou o porquê de estar constantemente mascarado”.

Depois de tomarmos consciência será mais fácil “aceitarmos as nossas particularidades”, continua Filipe Crawford. “Não temos necessariamente de lutar contra elas, temos de ter consciência de que elas existem”, continua, também para “compreendermos como é que as outras pessoas nos veem”.

“Aceitamos mais facilmente idiossincrasias de alguém, se estivermos habituados a observar”

“A observação” é algo também importante a transportar para a realidade social. Esta é “grande parte do trabalho do ator”, que “faz um esforço para compreender como é que as outras pessoas são ou porque é que têm aquela máscara, aquela expressão…”.

“Aceitamos mais facilmente idiossincrasias de alguém se estivermos habituados a observar e a tentar perceber porque é que essas pessoas são assim”, diz Filipe Crawford.

A primeira máscara física real com que o ator trabalha na Técnica da Máscara é a máscara neutra, “criada no início do século passado”. Para além das máscaras neutras os atores trabalham com diversas máscaras expressivas.
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“Se nós, na vida, também esperarmos três segundos antes de responder e pensarmos no que podemos dizer ou fazer, isso pode-nos ajudar”

Um outro aspeto fundamental na Técnica da Máscara “é que o ator tenha controlo sobre aquilo que mostra, sobre aquilo que faz”.“Quando o ator está a tentar representar ou tornar presente uma personagem que não é ele, não pode ser espontâneo, não pode agir sem pensar, tem de transformar a sua ação de acordo com os seus objetivos”, diz.

“Se nós, na vida, também esperarmos três segundos antes de responder e pensarmos no que podemos dizer ou fazer”, como a regra de distanciação na Técnica da Máscara obriga o ator a fazer, “isso pode-nos ajudar”, diz Filipe Crawford.

Origens da máscara no teatro estão associadas ao ritual

O surgimento da máscara física no teatro “está muito ligado ao ritual”, explica Filipe Crawford, e o poder que ganha neste âmbito deve-se precisamente à “utilização ritual” que tem. “Por exemplo, em alguns países do Oriente, a máscara é sagrada e é considerada como tendo um poder sobrenatural sobre o ator ou sobre os homens que a utilizam”, refere.

No teatro, a máscara é usada desde o Teatro Grego, em que o ator era “apenas um executante da máscara, essa, sim, a personagem”.
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“Desde as ditas sociedades primitivas, ancestrais da humanidade” que as máscaras estão associadas a “um uso cultural no seio de rituais”, explica Ricardo Seiça Salgado, ainda que seja preciso cuidado com o uso do plural de máscara.

Algumas máscaras foram usadas para “rituais de passagem, que marcam o ciclo de vida, por exemplo, rituais de iniciação ou rituais de fertilidade”, refere o investigador, outras “para comunicar com ancestrais, para afastar espíritos malignos, ligadas ao Xamanismo, ou para honrar os deuses”.

O garantido parece ser que “está associada sempre a um momento de efervescência coletiva, porque o ritual tira as pessoas da vida quotidiana e coloca-as ali para um outro enquadramento”.

A máscara “por um lado, esconde, mas por outro, estando ligada ao ritual, revela também”

“A máscara implica sempre um espaço entre, é aquilo a que na antropologia se chama liminaridade. O límen [palavra em latim para limiar] era a soleira da porta, aquela parte, quando se está debaixo de uma porta, em que nem se está dentro nem fora, está-se entre. E a máscara coloca-nos nesse espaço”.

“É um instrumento de simulação ambíguo”, explica Ricardo Seiça Salgado, “é um objeto que esconde o corpo, parte da face e, estando ligado ao ritual, detém características da função ritual. Por um lado, esconde, mas por outro, estando ligada ao ritual, revela também”.

“Por trás dos dramas sociais podemos ver procedimentos que provêm de procedimentos artísticos”

“Não é nada de novo usar uma máscara para afirmar uma posição possível”, mas associar isto “aos procedimentos artísticos, deve ter”, segundo Ricardo Seiça Salgado, “sempre em mente o eco, a reverberação que faz do ritual”.

“Por trás dos dramas estéticos, por trás daquilo que vemos em palco, está uma análise do social, do cultural”, explica o investigador, “e Richard Schechner diz que também por trás dos dramas sociais podemos ver procedimentos que provêm de procedimentos artísticos”.

Por exemplo, nas “máscaras das manifestações dos movimentos sociais”, como a máscara dos ‘Anonymous’, “que omite a identidade do hacker, mas revela uma série de questões que a internet coloca, interliga a omissão de identidade e a construção de um outro mundo possível”.

A pergunta que coloca, em tom retórico, é se “em Portugal há formação em estudos de performance", que, ao interligarem “as questões sociais com as questões teatrais”, permitem melhor perceber a entrada “de procedimentos artísticos, como o uso de máscaras, na arena social".

“Pode haver abordagens no interior de outros estudos, mas eu não conheço nenhum curso, licenciatura ou mestrado, em estudos de performance”, diz. Esta é, nota, uma “matéria de estudo ainda muito recente” no país.