Há vozes que não se explicam. A força de trovão do timbre de Sérgio Onze no arrebate final da assombrosa interpretação ao vivo de ‘Por Saudade ou Por Memória (Disse-te Adeus)’, dilacerantes palavras de Manuela de Freitas para o Fado Raul Pinto, encerramento deste seu seguríssimo álbum de estreia, é tão singular quanto intrigante. “Nem eu sei dizer”, confessou-nos o fadista do Seixal, que, aos 17 anos, fez da Tasca da Bela, em Alfama, Lisboa, a sua casa, quando, ainda digerindo a atuação especial no auditório do Museu do Fado, lhe perguntámos se sabe de onde vem tamanha intensidade. “Nós” é um disco de fado, de fadista, mas é, igualmente, um disco de alguém que tenta encontrar o seu lugar num meio povoado por vozes possantes, atuações memoráveis, gravações imortais e uma tradição que muitas vezes enjeita quem tenta desviar-se dos cânones. Talvez por isso o entusiasmo de uns possa ser o nariz torcido de outros quando, ao olhar para os créditos de produção do disco, encontram, lado a lado, os nomes do fadista Ricardo Ribeiro e do cantor, compositor, produtor e músico que se apresenta no universo pop português enquanto Agir. “Conheço o Ricardo há alguns anos e quando ele percebeu que eu estava a pensar gravar ofereceu-se para me ajudar. Foi meio irreal”, explica-nos Sérgio Onze, “ter o Ricardo a considerar-me merecedor desse legado, desse passar de testemunho fadista, deixa-me muito honrado. O Agir surge no projeto por sugestão do Ricardo. Ele sabia que eu procurava um caminho que, sonoramente, ‘interrompesse’ o fado tradicional e sentiu que o Agir seria uma mais-valia neste processo”. No decorrer dos 14 momentos que compõem “Nós”, esse cruzamento inusitado de visões, à partida, contraditórias, não nos deparamos com o choque: identificamos antes, nas entrelinhas, uma complementaridade enriquecedora de um cancioneiro que, por mais intimidador que possa parecer, nunca faz Onze vergar-se.
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Música: que voz é esta, Sérgio Onze?
Impelido por Carminho, apadrinhado por Ricardo Ribeiro e desconstruído por Agir, o fadista Sérgio Onze faz de “Nós” uma das grandes estreias de 2024