Todas as memórias familiares felizes se assemelham, mas as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Assim acontece com os livros de Annie Ernaux sobre o pai (“Um Lugar ao Sol”, 1983) e a mãe (“Uma Mulher”, 1988), ainda que ambos enquadrem as recordações pessoais num contexto histórico-sociológico, acentuando a questão social: o pai camponês e a mãe operária que montam um café-mercearia, sempre com receio de voltarem à sua anterior condição, que trabalham para permitir o sucesso da filha, a filha que estuda e se torna uma intelectual burguesa, beneficiando do esforço dos pais mas de certo modo traindo-os, “inimiga de classe” envergonhada com a falta de gosto e de horizontes deles, e depois envergonhada consigo mesma por ter tido essa reacção.
“Um Lugar ao Sol” apresenta-se como um texto retrospectivo, escrito década e meia depois da morte do pai. Começa com detalhes ínfimos do funeral, o cheiro das flores em água estagnada, e, imediatamente antes, com Annie a velar o pai moribundo, enquanto lê Simone de Beauvoir, sabendo que o pai morrerá antes de ela terminar o livro, e que, para ele, ‘cultura’ significava o cultivo da terra, não Beauvoir. Apresentando o pai como afável e quietista, Ernaux evoca episódios que devia ter esquecido, mas que se mantiveram vivos porque ela os quisera esquecer: aquele homem que não entendia que se estudasse uma língua estrangeira, ou que não sabia que uso dar a um after-shave oferecido pela filha. Ele lutou por um lugar ao sol, mas não separava o bom do útil ou do conhecido, queria a felicidade da filha, mas não a compreendia.