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A prosa completa de Eugénio de Andrade é um mapa que se desenha outra vez. Por Pedro Mexia

Há um livro que junta toda a prosa escrita por Eugénio de Andrade, e lê-lo ilumina não só a produção poética, complementando-a, como também redesenha o mapa das suas relações literárias

Eugénio de Andrade nasceu José Fontinhas no Fundão, em 1923, e morreu no Porto, em 2005. Poeta maior da língua portuguesa, começou a publicar aos 17 anos
António Pedro Ferreira

Alguns dos nossos melhores poetas são prosadores. Não porque as prosas sejam superiores aos versos, mas porque em determinados textos em prosa as poéticas autorais se concretizam de modo mais nítido e feliz. Os testemunhos, prefácios, entrevistas e discursos reunidos em “Os Afluentes do Silêncio” (1968), “Rosto Precário” (1979) e “À Sombra da Memória” (1993) são disso bom exemplo. Se Eugénio de Andrade fez sempre questão de se apresentar como o poeta do despojamento e da justeza, houve colectâneas de poemas (não muitas, é certo) em que isso se tornou menos evidente, em parte pelo efeito de reiteração, em contraste com a perfeição estilística destes conjuntos de prosas (o facto de serem três, e não 30, ajuda).

Um dos motivos de interesse de “Prosa” consiste na defesa de um cânone que hoje, diga-se, parece bastante consensual. Eugénio amava quatro poetas portugueses acima de tudo: Camões, Cesário, Pessanha e Pessoa. Os versos de Camões, que antologiou, tinham um “aprumo de vime branco”, um “juvenil ressoar de abelhas”, uma “graça súbita e felina”, uma “modulação de vagas sucessivas e altas” e o “mel corrosivo da melancolia” (podemos questionar estas formulações, mas são todas memoráveis e pessoais). Se não queria para nada o poeta que, tendo levado uma vida à margem, viria a tornar-se autor de Estado, valorizava muitíssimo a tensão entre sensualismo e idealismo, “nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos para tanto se desprender deles”. Cesário, que morreu jovem, e inédito em livro, era no entanto um “artista (…) consumado” que “levou aprumo e rigor a um verso [pós-romântico] que estava à beira da pura inanidade”. Em Pessanha, admirava Eugénio “a indecisão tornada matéria de poesia”, a “música sem par e sem suporte”, a exigência gémea do abandono, a misteriosa transparência. Pessoa, descobriu-o adolescente ainda, na Biblioteca Nacional, e percebeu que era uma sombra enorme, e que só se podia reclamar seu herdeiro virando-lhe as costas. Além disso, não gostou que a celebridade póstuma tivesse deixado no esquecimento outros poetas, e menos gostava daquilo a que Cesariny chamou “pinar só c’a cabeça”, ou seja, a intelectualização dos instintos.