Política

Presidente entra em 2020 com um terço dos habitantes da mais ocidental praia lusitana

Não eram tantos quanto se esperava. Marcelo teve cerca de 130 dos 430 corvinos na sua passagem de ano celebrada na mais remota terra portuguesa. Foi no ginásio de uma escola onde há cerca de 50 alunos para 20 professores.

Marcelo cumprimentou todos os presentes na festa do Corvo
VITOR MATOS

...cinco...quatro...três...dois...um... plop!, "Feliz 2020!", e Marcelo Rebelo de Sousa festejou assim a entrada no ano da sua recandidatura (ainda não assumida) na mais ocidental praia lusitana, a Ilha do Corvo, a mais remota e pequena ilha do Arquipélago dos Açores. Abriu uma garrafa de espumante da CVIP, Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico, comentou que era "bom", brindou com socialistas - com o presidente da câmara da vila e com o presidente do Governo Regional -, e depois de engolir as doze passas devidas pelo Ano Novo, verbalizou às televisões desejos de que corra tudo bem à Europa, a Portugal e aos portugueses. Saiu, logo, quando passavam vinte minutos da meia noite. Na sala, havia mesas vazias. Dos 430 corvinos, só cerca de 130 aderiram ao jantar e à festa gratuita com o Presidente. Era menos do que se esperava, mas apesar de tudo era quase um terço da população total. Mas chamam-lhe também a Ilha dos Afetos.

Das mesas postas para 200 pessoas, pelo menos quarenta eram jornalistas e membros da comitiva. De resto, nem todos os ilhéus sentiram o apelo de participar, ou as circunstâncias não ajudaram para aderirem à festa. Óscar Rocha, vereador das obras públicas na câmara do Corvo, diz que terem morrido nove pessoas na ilha este ano, "três delas muito novas", não ajudou. Vários dos presentes explicaram ao Expresso que o luto e a possibilidade de as pessoas serem faladas ou criticadas socialmente por estarem a celebrar, fez com que muitas ficassem em casa - e não são precisos muitos para fazerem a diferença. O próprio Marcelo usou o mesmo argumento: "Este ano, a ilha teve um nascimento e nove mortes e houve famílias inscritas que, por motivos de luto, não vieram comemorar. Isso, que são costumes que existem aqui, não impede que haja tanta gente no jantar, mesmo com o tempo terrível que está lá fora". Chovia e fazia frio.

A festa foi morna - pelo menos enquanto as 'entidades' estiveram presentes -, na sala decorada com balões dourados e negros, no ginásio de uma escola frequentada por cerca de 50 alunos do básico ao 12º ano, e 20 professores no total - embora nenhum docente estivesse no jantar uma vez que a maioria nesta época do ano sai da ilha para visitar as famílias ou fugir do isolamento.

"O Corvo não é isolado", contrapõe Teresa Rocha, a mulher do vereador. Hoje, com a internet, a vida corvina é teoricamente igual à dos outros. Está tudo à distância de um click. "O problema é mais a falta de transportes", sobretudo no inverno, quando está mau tempo, ou péssimo tempo, como é o caso. "Tivemos um grande azar este ano, estamos condicionados pelo tempo", acrescenta Rosa Rego, sentada na mesa dos Rocha. Foi ano de furacão Lorenzo, que danificou o porto das Flores, e que está a ter consequências no abastecimento de bens ao Corvo.

Podia haver grandes panos a atravessar o teto do ginásio, para a tornar a sala mais acolhedora, mas não foi possível garantir a entrega a tempo. João Machado, 43 anos, que organizou o jantar, diz ao Expresso que desde 5 de novembro não chega qualquer contentor ao Corvo com congelados. Se a população já está habituada a ter de armazenar para fazer face aos períodos mais difíceis no inverno, os problemas que existem desde o furacão afetam sobretudo a restauração - parte dos bens consumidos no jantar de fim de ano chegaram à ilha através de avião.

De prato na mão, na fila para o buffet onde podia escolher uma alcatra tenríssima, Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional explica ao Expresso que estão tomadas medidas para atenuar os problemas de abastecimento ao Corvo - que chegaram a levar o deputado regional eleito pela ilha a fazer greve de fome. A contratação de um cargueiro que abastecerá as Flores permitirá a partir da próxima semana a normalização da logística no Corvo, garante.

"É um caso muito especial pela dimensão, pela população, pelo isolamento que é ainda maior do que nas Flores, a ilha vizinha", argumenta Marcelo Rebelo de Sousa, que logo depois da aterragem na ilha enalteceu a "coragem" de quem decide viver aqui. Nos anos 20 do século passado, Raul Brandão escreveu "As Ilhas Desconhecidas", onde descreveu o Corvo como lugar esquecido de "solidão" e "silêncio", onde todos os 600 habitantes andavam descalços, à exceção do padre, onde a vida era comunitária, as trocas muitas vezes diretas, a pobreza endémica, e a agro pecuária e pesca de subsistência. E essa dependência do vento sempre presente - "o vento é a preocupação constante desta gente”, verbalizava o escritor - e ainda não havia aviões com dificuldades perante as ventanias laterais.

À porta do reveillon, que Marcelo abandonou cedo, perto da uma da manhã - ainda ia escrever o discurso do Ano Novo - jovens fumam à chuva. "Falta aqui vida noturna", diz Márcio, 30 anos, mecânico na câmara. "Mas a gente entretém-se à nossa maneira". Para os mais novos, não é fácil. "Faltam oportunidades e o pessoal entra aqui facilmente em tédio". Karren Mendonça, 38 - que veio aos 9 anos de New Bedford - não tem exatamente a mesma perspetiva, a+esar de ironizar que "beber e fumar" é uma forma de os jovens couparem os tempos livres: "No Corvo faz-se o que não se faz em muitos sítos. Quando queremos confusão vamos para fora, aqui temos a nossa paz e o nosso sossego".

A festa estava a acabar, Quando o dueto que tocava de Beatles, Trovante ou Leonard Cohen no palco deu lugar a um DJ mais popular, o povo aderiu (ainda que timidamente à pista de dança). Um rapazinho que disse a Marcelo que ia tomar banho ao mar com ele de manhã, vacila. Que recados políticos estará o Presidente a preparar a esta hora?