Entre Deus e o Diabo

A mentira como arma e o racismo estrutural de Ventura e... dos portugueses. Oiça aqui o último episódio de "Entre Deus e o Diabo"

No 7º e último episódio do podcast “Entre Deus e o Diabo”, três investigadoras universitárias desmontam os argumentos de André Ventura em relação à imigração: a criminalidade baixou, os estrangeiros não roubam empregos e a Segurança Social lucra. Duas vozes autorizadas da Igreja explicam como Ventura contraria as posições de vários Papas. E ainda: como o Chega potenciou o racismo nas polícias, como a mentira rende mesmo quando é detetada, e como a direita moderada é a mais vulnerável à direita radical

“Não há uma relação entre imigração e criminalidade”, afirma Catarina Reis Oliveira, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e coordenadora do Observatório das Migrações, no 7.º e último episódio do podcast do Expresso “Entre Deus e o Diabo”, sobre o percurso de André Ventura. As estatísticas, segundo declarações de especialistas ao Expresso, desmentem as posições do Chega: os imigrantes não roubam os empregos aos portugueses, não vivem à custa da Segurança Social e não estão a substituir a população, ideias difundidas pelo líder da direita radical. O seu discurso terá alguma tração no eleitorado, porque os preconceitos dos portugueses e dos militantes do Chega não são assim tão diferentes, como apontam estudos recentes.

Tiago Miranda

Segundo Catarina Reis Oliveira, o aumento da imigração não fez crescer a criminalidade, ao contrário do que sugeriu André Ventura quando criticou a política de “portas abertas” depois do duplo homicídio no Centro Ismaili de Lisboa perpetrado por um refugiado: “Em 2021 atingimos o valor inédito de quase 700 mil estrangeiros residentes, e estaríamos, com esse aumento, a ter um aumento dos reclusos estrangeiros nas nossas prisões.” Mas não é o que se verifica: “É exatamente o inverso. Nos últimos anos, apesar de terem aumentado os estrangeiros em Portugal, temos uma diminuição substancial dos reclusos”, diz a coor­denadora do Observatório das Migrações neste episódio, focado no discurso racista e xenófobo do líder do Chega. “Em 2013 tínhamos 2647 reclusos estrangeiros”, explica a investigadora, um valor “que tem vindo a descer nos últimos anos, atingindo em 2021 o mais baixo número de reclusos estrangeiros: 1661”.

Outro ponto em que Ventura insiste é nos imigrantes que “vivem à conta dos nossos subsídios e dos nossos salários”, como já declarou no Parlamento. Mais uma vez o líder do Chega explora perceções que não correspondem à realidade: “O saldo entre o que os estrangeiros contri­buem para a Segurança Social versus o que beneficiam é favorável. Em 2021, atingimos o saldo mais elevado de sempre, de €968 milhões”, explica a coordenadora.

No que diz respeita aos “nossos salários”, ou seja, a ideia de que os estrangeiros roubam o trabalho aos portugueses, também não corresponde à verdade: “Os estrangeiros e os nacionais não ocupam as mesmas atividades ou os mesmos grupos profissionais”, diz. “Enquanto temos 51% dos estrangeiros a trabalhar em atividades ou empregos pouco qualificados, isso apenas acontece com 38% no caso dos nacionais. Temos mais prevalência dos estrangeiros a ocupar os empregos que os nacionais não querem”, explica.

Racismo estrutural

Uma sondagem do ICS/ISCTE para o Expresso e a SIC, publicada em outubro de 2020, dizia o seguinte: 41% dos inquiridos concordavam totalmente ou em parte com esta frase: “A convivência entre diferentes raças ou etnias quase sempre causa problemas.” Mas havia outra questão que permitia avaliar o grau de racismo biológico: 23% dos inquiridos concordavam totalmente ou em parte que “algumas raças ou etnias são por natureza mais inteligentes do que outras” e 18% nem tinham posição. Mais recentemente, um estudo dos investigadores Sofia Serra Silva, do Instituto de Ciências Sociais, e Riccardo Marchi, do ISCTE, revelado pelo “Público” em janeiro de 2023, dava conta do seguinte: 73% dos militantes do Chega estão convencidos de que “existem raças mais trabalhadoras” e 31% consideram que “existem raças menos inteligentes” (22% não concordam nem discordam). Além disso, 63% consideram que “os imigrantes aumentam a taxa de criminalidade em Portugal”, o que não é verdade.

A socióloga Alice Ramos, investigadora do Instituto de Ciên­cias Sociais da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado ao estudo do racismo, diz no podcast que “os militantes do Chega não são diferentes, nas perceções que têm, do resto da população. São é muito mais permeáveis a um discurso de ódio” do que o resto dos portugueses. Para a investigadora, “há racismo estrutural em Portugal” — uma das ideias que André Ventura tenta combater —, “mas as pessoas não estão cientes disso”, diz ao Expresso. “André Ventura e a direita radical não são completamente estúpidos. Sabem que não se deve dizer que uma pessoa, por pertencer a uma etnia, é diferente ou menos inteligente. Então o que é que dizem? Que a cultura deles é incompatível com a nossa. Passamos então de um racismo biológico para um racismo cultural ou simbólico.”

A presidente da Obra Católica das Migrações, Eugénia Quaresma, também recorda que os últimos apelaram aos políticos para não serem violentos em atos e palavras com os migrantes – ao contrário do que pratica o católico Ventura. Enquanto normalizou o discurso racista na praça pública, o líder do Chega também mudou a relação da política com a mentira: “O que interessa é ir ao encontro do que as pessoas querem ouvir, independentemente de ser ou não verdade”, diz Fernando Esteves, diretor do jornal “Polígrafo”. Mas até a revelação das mentiras é “capitalizada” pelo líder populista.

Com tudo isto, para o politólogo João Pereira Coutinho, autor do livro “Conservadorismo”, Ventura é, “sobretudo, uma grande ameaça para a direita moderada e para a direita liberal”. Uma ameaça que Luís Montenegro já tentou minimizar.

Tiago Pereira Santos

Um retrato falado de André Ventura, sobre o caminho contraditório do líder do Chega para o extremismo político. A narrativa, da autoria do jornalista do Expresso Vítor Matos, conta a história de André antes do venturismo, um fura-vidas à procura de uma oportunidade, e que ascende na Igreja, na academia e no comentário, até ceder às tentações da notoriedade e do populismo. Entre Deus e o Diabo, Como André se fez Ventura, é um podcast narrativo de sete episódios com publicação semanal. Oiça aqui todos os episódios: