Entre Deus e o Diabo

O seminarista e as mortificações da carne: “Impunha castigos físicos a mim próprio”. Oiça aqui o 3.º episódio de "Entre Deus e Diabo"

“Eu saí do seminário, mas o seminário não saiu de mim”, reconhece o líder do Chega. A investigadora alemã Lea Heine chegou à conclusão que os eleitores não são atraídos para o partido pelo discurso religioso de Ventura, e explica porquê neste episódio sobre a ida de André Ventura para o seminário. Oiça aqui a terceira parte do podcast narrativo ‘Entre Deus e o Diabo, como André se fez Ventura’

André Ventura usa a linguagem religiosa como um dos eixos de comunicação política do Chega, mas esse não é um argumento a que os eleitores sejam especialmente sensíveis, explica Lea Heyne, uma investigadora alemã do Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Portugal desde 2019, que estuda o eleitorado da extrema-direita na Europa. “O eleitorado do Chega é mais religioso do que o eleitorado de esquerda, mas dentro do eleitorado de direita, as pessoas mais religiosas votam nos partidos tradicionais, como o PSD ou CDS”, explica ao Expresso no 3º episódio do podcast “Entre Deus e o Diabo”, sobre a história de André Ventura antes de ser líder político - neste caso sobre a ida e a saída do seminário, e sobre a utilização de “materiais religiosos” que admite ter usado para auto infligir castigos físicos.

“O Chega atrai um eleitorado mais jovem, enquanto os mais velhos ficam com a direita tradicional, e os mais velhos são mais religiosos”, diz Lea Heyne ao Expresso. "A religião não é um fator importante para o voto no Chega”, isto apesar das sucessivas invocações de Deus por parte de André Ventura.

“Não é isso que é interessante. Quando comparamos com outros países na Europa, o eleitorado é similar”, clarifica a investigadora auxiliar do ICS. Esse eleitorado “vem da abstenção, a partir de pessoas mais jovens, é mais masculino, menos educado, e motivado por atitudes populistas”. São votantes que admitem “posições mais autoritárias que o resto do eleitorado em geral e da direita tradicional”. Além disso, esses eleitores aceitam a retórica “anti -imigração”, o que "não é surpreendente, e é o que se vê nos outros países”, esclarece.

Embora os líderes da direita radical europeia tentem usar o tema da religião como Donald Trump ou Jair Bolsonaro fazem nos Estados Unidos e no Brasil, outra das razões para não ter o mesmo resultado é que a população evangélica tem menos relevância.

André Ventura tem apelado aos evangélicos - já tiveram mais peso no partido - mas sobretudo vai ganhando importância uma ala católica ultra conservadora, como o Opus Dei, como diz no podcast Nuno Afonso, um antigo dirigente e amigo de Ventura na adolescência que já abandonou o partido. Ao assumir que auto infligiu castigos corporais, e que usou cilício, o líder do Chega pode estar a dar conforto e a gerar mais identificação com membros desse grupo.

Depois de ir para o seminário, André conta que se apaixonou por uma mulher, pelo que veio a ter uma “crise de personalidade” e que saiu por isso, mas também por não ter encontrado a profundidade que procurava: “Eu ia com uma ideia mais espiritual da coisa. Nessa altura, eu impunha alguns castigos físicos a mim próprio. Tenho a noção da dimensão diferente com que vivia a religião e outros viviam…” O jovem estudante autoflagelava-se “com materiais religiosos de castigo, como o silício ou outros” e que chegaria a usar depois “quando estava na universidade”, confessou na entrevista dada ao Expresso, cujo som é reproduzido neste episódio.

Ventura diz que Deus lhe uma missão Foto José Fernandes

Um antigo colega do grupo de jovens de André e ex-padre, diz no podcast que nunca no seminário lhe fizeram tais propostas, nem conhece ninguém que praticasse castigos físicos e não acha “normal” esse tipo de prática religiosa.

Nessa fase, Ventura acabou por encontrar essa “espiritualidade” na igreja de São Nicolau, onde viveu durante a faculdade, junto do seu mentor e diretor espiritual, o padre Mário Rui Pedras, que esta quarta-feira foi suspenso de funções depois e uma denúncia anónima que o envolveu no caso dos abusos de menores na Igreja. Na reação, o líder do Chega disse-se “chocado”, e esperar que a justiça faça o seu trabalho.

Este episódio conta ainda com a avaliação do padre João Teixeira sobre os argumentos religiosos trocados por dois candidatos presidenciais, uma vez que acompanhou a conversão de André e a sua ida para o seminário, mas que também seria, mais tarde, pároco de uma igreja frequentada por Marcelo Rebelo de Sousa no Estoril.

Um retrato falado de André Ventura, sobre o caminho contraditório do líder do Chega para o extremismo político. A narrativa, da autoria do jornalista do Expresso Vítor Matos, conta a história de André antes do venturismo, um fura-vidas à procura de uma oportunidade, e que ascende na Igreja, na academia e no comentário, até ceder às tentações da notoriedade e do populismo. Entre Deus e o Diabo, Como André se fez Ventura, é um podcast narrativo de sete episódios com publicação semanal. A partir de 12 de março e a cada domingo será publicado um novo capítulo em todas as plataformas de podcast e em Expresso.pt

Tiago Pereira Santos